quinta-feira, 28 de julho de 2016

A culpa deve ser do senhor Carlos, que se plantou em Santa Iria da Azóia à beira da Nacional 10, e aí vende petiscos até às duas da manhã. E a culpa é certamente minha, que tenho ananás fresco e diurético no meu frigorífico, e em vez de me ficar pelo saudável e natural, opto por me empanturrar de couves, chouriços, carnes gordas e tubos de ensaio cheios de vinho fresco e áspero. E juro que me parece uma boa opção, sobretudo depois de um dia de trabalho em que a refeição é apenas o momento em que me alimento de forma apressada, como se o cumprimento de regras impostas se superiorizasse ao gozo da mastigação.
Era para ser moelas, mas não resisti à novidade de jantar um cozido à portuguesa, como se meia-noite pudesse ser meio-dia. Afinal, depois vinha o recolher, umas horas no face a actualizar os treinos de candy crush saga, tempo suficiente para a bela da digestão.
Adoro o momento em que me sento numa tasca sozinha, peço o petisco e aguardo em pensamentos. Só eu comigo. E estava eu nesta coisa profunda, que é a intimidade comigo mesma, quando a figura se aproximou e se animou.
Desculpa, tenho estado a olhar para ti e a pensar. Posso dizer uma coisa?
Acho que o olhei por cima da armação verde dos meus óculos e, apesar da cor, não fui capaz de vislumbrar qualquer raio de esperança. Mesmo assim, resolvi dar-lhe a oportunidade que dou a todas as pessoas, porque ainda não consigo deixar de achar que, se coexistimos no espaço, teremos todo o direito de coexistir em palavras.
Claro. Ora diz.
É pá, é que tenho estado a olhar para ti, e és uma mulher bonita, tens umas feições perfeitas. Mas não percebo porque estás assim
Assim?
Pois. Não é por nada, mas já pensaste como te mexias melhor com menos dez quilos?
Desculpa? Por acaso achaste que tinha dificuldade em sentar-me?
Não leves a mal, mas eu também tenho um filho assim.
Assim? Assim como?
Pois, tu gostas de comer, já percebi. Mas isso é um problema...
Um problema? Um problema é eu querer estar sossegada e tu achares que me podes incomodar. Desculpa lá, mas eu não venho aqui para falar com ninguém e quero estar sozinha.
É pá desculpa. Toca aí.
Não toco em lado nenhum.
Não me faças sentir mal, que eu gosto é de falar com as pessoas, tocar nas pessoas. Vou me sentir mal.
E foste sentir-te mal, sim senhora, mas pelas razões erradas.
De repente está implantada a revolução na Cabana do senhor Carlos, largue a senhora porque a está a incomodar, senhor Carlos deixe estar, que o cavalheiro está de saída, menina a conversa já me estava a enojar, há pessoas que realmente parecem anedotas, este tipo é sempre assim, mete-se sempre com as pessoas,...
E silêncio, enfim,...
Não negaria uma conversa àquele homem, se se tivesse abeirado e me confessado que se sentia só. Comovem-me as pessoas que sofrem de solidão, porque ainda somos tantos humanos à face da terra que não vejo razão para uma tristeza assim. Mas aquele homem quis salvar-me de um problema que não é meu, como forma de se fortalecer numa ficção desajeitada.
Quando eu digo que detesto o provincianismo, também é disto que falo. E se como farinheiras, e moelas, e pudins dourados e caseiros a babarem-se de molhos de caramelo, podia não ser pelo gosto da boa mesa, mas apenas para me proteger de popularidades desadequadas.
Bebo o café, e hoje não vai o digestivo. Saio dali satisfeita, como sempre, porque a comida ´é tão boa que me enche mais a alma do que as desconversas.
E lá fora está um homem de polo cor de rosa, num carro preto. Fica a ver-me passar e quando me vê junto ao meu carro, resolve assobiar-me e fazer-me um sinal.
Oh meu Deus!, querem ver que o cozido me emagreceu?
Arranco da cabana para o mundo, onde ainda é possível sentir-me só.

sábado, 23 de julho de 2016

Hoje atendi o papá da menina do papá e tive saudades de um tempo que só reconheci bastante tempo depois de o ter perdido. E não é que não tenha valorizado o que tive durante o tempo que tive, é nunca ter sido capaz de imaginar a quantidade de tempo que se chora a perda, mesmo sorrindo.
O homem entrou-me pela linha adentro. Sim. O homem. A voz apenas o denunciava. A sua preocupação. A sua menina. Tudo o que importa na vida. Ela estava no meio de uma estrada sem telemóvel e ele demasiado longe para a poder socorrer. Foi nestes preparos que me entregou a sua menina. Chame-lhe um reboque e um táxi. Peça ao reboque para lhe dizer que vai ter um táxi para a ir buscar. Faça-me esse favor.
Em suma: você, que também está distante como eu, cuide dela como se fosse sua, ou nossa, o que você quiser.
Claro que sim.
A chamada seguinte, como por magia, era de um outro homem que me disse que havia uma menina que estava na estrada sozinha, de carro avariado. A mesma menina. A menina de seu papá. Pedi para a chamar e chamei-a pelo nome. Maria Salomé, tinha-me dito o pai. Não estranhou que soubesse o seu nome, como quem tem a ideia de que o mundo gira à sua volta, qual estrela de rock que contamina tudo, apenas com a sua existência.
Salomé é apenas duas coisas: a menina de seu papá e uma boneca de papel a quem dei esse nome, enquanto a vestia e despia com as minhas garridas costuras de papel de lustro. Nada mais. Mas nesse momento, era também a possibilidade de eu cumprir exemplarmente o meu compromisso com um homem desesperado.
Vai ter táxi, Maria Salomé, claro que sim. Acalme-se. Daqui a pouco estará em casa. Não agradeça, estou a fazer o meu trabalho.
E a seguir ligo para o pai, que me atende logo o telefone, e ah minha senhora falou com ela? Muito obrigado.
E fiz o meu trabalho. Um reboque e um táxi. Tudo o resto foi cuidar dos afectos dos outros, e ninguém me paga para isso. Gosto mais de fazer as coisas para que não me pagam, Maria Salomé, porque um dia, se a tua vida seguir as regras naturais da existência, tu estarás a chorar como podes a perda do papá da menina do papá, e compreenderás, também tu, que a coisa mais tranquilizante que temos na vida, são as pessoas que só respiram bem com o nosso bem-estar.
O papá enlouquece se te sentir em perigo, Maria Salomé. O papá chora o teu sofrimento. O papá não é ninguém quando tu sentes que não és ninguém, Maria Salomé. Que farás tu da tua vida, quando te abandonarem nos calabouços de uma orfandade profunda? Que será de ti, Maria Salomé? Que luto é esse que te aguarda? Como voltarás a garrir~te por dentro e com que luz iluminarás ainda as estradas e os atalhos que te restem? 

sábado, 11 de junho de 2016

Olho para ti, e és a possibilidade de frescura das alfaces citadinas. Gosto do que tu dizes,... que te apresentas neutra porque não te interessa que te sintam. E que uma mulher sensual é uma mulher que está confortável. Vem-me à cabeça uma coisa muito estúpida, como se fosse suposto que falasses e eu me lembrasse de situações pouco condizentes com a abstracção das ideias. Vem-me à memória o dia em que decidi que os sapatos têm que estar de bem com o pé. Sempre. Não sei se esse é um dos atalhos para a sensualidade. Não me interessa a sensualidade. Apenas o conforto. Tu que não te sintam,... eu que me conforte,... as coisas que nós valorizamos.
E somos mulheres assim. Sentamo-nos na treta no degrau de uma casa, vamos dizendo coisas que nos passam pela cabeça, e não nos estranhamos com isso, exactamente como as pessoas que se conhecem há muito tempo.
Não estava previsto seres uma velha de chinelos, mas se calhar vais ser uma velha de chinelos,... rio-me contigo, para que não te assustes. Coisas que tu dizes da boca para fora, como se não te conhecesses desde sempre. Para mim, tu serás uma velha guerreira com a sua cota de reforma, e gostarei de te ver, também assim.
Faço-te um cigarro. Faço-me um cigarro. Mantenho o isqueiro na mão, para que nos irritemos o menos possível com o murchar de todos os fogos.
Dizes-me que te acompanhe, e eu vou. Trazes na mala ração para gatos e empoleiras-te nos muros para os alimentares. Há ainda a gatinha mamã que come Royal Canin, repasto escolhido por ti com carinho, porque uma mãe é uma mãe. Eu sei.
Pela primeira vez, os gatos da minha rua não me estranham. E eu gosto de ser próxima de repente, ainda que a razão seja o interesse deles.
Fica então prometido um copo de vinho, e eu dou por mim na esquina da minha rua a ver-te sumir, degustando ainda a delicadeza dos teus gestos, enquanto espalhavas amor pelas calçadas. E, de repente, sinto paz.

sábado, 7 de maio de 2016

Gosto do amor,
meu amor,
das alvoradas sem palavras,
do chilrear dos pássaros
que papagueiam por nós,
de ser o teu bébé,
tété, mémé,...
Paga-me as contas!

Gosto do amor,
meu amor,
das tardes de mão dada,
que assedies as mulheres
e eu não dou por nada,
sou o teu xuxu,
mumu, tutu,...
Lava-me o carro!

Gosto do amor,
meu amor,
das noites em que não estás,
escutar os ecos de um silêncio apetecido,
que sejas o meu tótó,
bóbó, mómó,...
e o António aqui tão perto!

quarta-feira, 4 de maio de 2016




A MAÇÃ QUE ANOITECE


Dona Mariana de Sá, nascida em 1918 , era amante de frutas frescas e doces. Quis ver o seu

nome em acrescentos de poesias arrancadas à terra, e assim o alindou com um "Pereira" de seu

marido. Mulher de mais atitudes do que de falas, nunca me contou o que a terá feito decidir­-se

pelo casamento com Leonardo Pereira, mas não me espantaria se tivessem sido os seus olhos

mágicos, que mudavam de cor ao ritmo das emoções ou à falta delas.

Dona Mariana não era nem muito bela, nem muito esbelta, nem muito nada do que fosse moda

para a época. Trabalhava num banco e ocupava-­se da família, o melhor que podia. Tinha as

suas amigas, mas nenhuma que compreendesse os desafios de uma mulher mais do que

moderna para o seu tempo, que ganhava o seu sustento.

Amava a sua casa virada para o mar. As conversas mais íntimas, tinha-­as com a macieira que

se enraizara no seu pequeno jardim, debruçada sobre a janela do seu quarto.

Numa noite, decidiu o resto dos seus dias. Recebeu em casa uns amigos, sorriu­-se com eles e

deu-­lhes de jantar. Em agradável conversa, Leonardo terá dito aos comensais que encontrava na

mulher a amizade de uma irmã.

Mais um conhaque e um café e não tardaram as despedidas. Dona Mariana preparou o sofá da

sala com lençóis de solteiro e disse:

­ A partir de hoje durma na sala, porque os irmãos não dormem juntos. Ah!, e não me dirija mais

a palavra.

O silêncio fez-­se até ao dia em que o destino roubou Dona Mariana à vida e aos seus.

Leonardo, que ao longo dos anos intensificava sestas em outros leitos que não o matrimonial,

deixou-­se de aventuras e voltou a dormir no quarto que tinha sido da mulher. Todas as noites,

antes de se deitar, tinha o cuidado de deixar a janela aberta, porque acreditava que Mariana o

visitaria, galgando a pequena parede que separava o quarto do quintal. Traria na mão direita um

cesto de verga cheio de maçãs vermelhas acabadas de colher, e assim voltariam a ser um casal.

Pensamentos e imaginações de um velho só, coisas próprias de demência ou de saudade,...

nem sei bem se a saudade não será um estado de demência dos que perdem o que mais não

podem agarrar.

Sei que Leonardo amuou e, num dia em que se zangou mais do que o costume com a ausência

casmurra da mulher, fechou a janela do quarto e decidiu que o assunto assim se encerraria para

sempre.

Nessa noite, num rompante estridente que se fez notar pela janela, o quarto foi invadido por uma

maçã gigante, muito vermelha e brilhante, e o fruto, abrindo-­se em duas partes sobre a cama do

homem adormecido, roubou o corpo ao leito e voou rumo a um céu imenso.

À passagem pela lua, estavam as estrelas aninhadas nas traseiras de um quarto crescente, só

para os ver passar,... o homem e a maçã.

quarta-feira, 6 de abril de 2016




Há dias em que é bastante evidente que crescemos e que temos um passado longínquo. Aconteceu-me hoje voltar ao meu liceu. A fachada estava tão diferente que não quis entrar. Tive medo de ver coisas que não me apeteciam. Mas lá entrei naquele sítio que já pouco reconheço, tantas foram as obras de melhoria. 
A senhora é encarregada de educação?
Quais senhora? Ah! Eu! Tinha perdido a idade de repente, mas recompus-me de forma desejável.
Vim acompanhar uma amiga que veio a uma reunião de professores. Tem aqui o filho a estudar. Eu também estudei aqui. Fui das primeiras alunas deste liceu. 
Entre. Esteja à vontade. 
Está tudo tão diferente. Não era nada assim. 
Pode entrar e ver o que estiver aberto. 
Já não existe a entrada cheia de escadas de cimento, nem o longo corrimão vermelho. Entrei.
Dirigi-me à sala de convívio, mas agora é uma biblioteca. Estava aberta. Entrei e olhei para um rosto que ficou satisfeito.
Ohhh!
 Professora!
A minha professora de Francês! Passaram 33 anos e estávamos ali outra vez, a reconhecermos o rosto uma da outra, a voz, a fisionomia, os tempos que foram nossos.
Eu dei-lhe aulas no meu primeiro ano como professora. Era uma virgem nestas coisas. 
E eu era uma virgem também, nestas coisas de andar num liceu, cheia de disciplinas, de responsabilidades e de coisas para pensar.
Verdade! No liceu pensava-se bastante, graças a professores que tinham apostado numa pedagogia que desvalorizava marrões e encorajava mentes inquietas. E aos 15, 16 anos, as mentes são bastante inquietas. E as que não são, tornam-se.
De repente, tive consciência do meu passado. Eu tinha crescido numa casa de educação exigente, nas garras de uma mãe disciplinadora, que tinha a braços quatro pequenos imberbes que haviam de crescer com maneiras. Não lhe foi difícil, mesmo assim, tantas eram as vezes que ameaçava escrever ao nosso pai, se as coisas não corressem de feição. E o pai, que era embarcado de profissão, meigo mas corpulento, vinha sempre de seis em seis meses, primeiro atracando-se de mimos e novidades, depois pedindo sempre explicações sobre comportamentos desviantes. Medo!
A escola era então o sítio onde eu podia desenvolver uma parte diferente de mim, ser singular, ser diferente, ser gente com ideias cada vez mais próprias. E era. Bebia sofregamente os ensinamentos da professora Vitalina, que passava slides nas aulas de Sociologia e nos perguntava sobre o que as imagens nos faziam sentir. Amava aquelas aulas, talvez mais os reflexos que produziam em mim do que do tempo em que estava ali sentada, a escutar e a discutir coisas importantes. Lembro-me de ter feito um trabalho voluntário depois de uma aula sobre produção humana, tal foi a força das palavras da professora Vitalina.
Depois vinham os passeios a Óbidos. Não me recordo do que víamos, mas lembro-me bem da algazarra que fazíamos no autocarro e dos almoços. Acho que íamos a Óbidos para bebermos os nossos primeiros copos e apanharmos as primeiras tonturas boas que a ginja nos dava. A professora Vitalina levantava-se da cadeira do restaurante, dizia Fernando Pessoa e as lágrimas caiam-lhe pelo rosto. Não nos surpreendíamos, porque aquela forma de sair da norma era um professor a ser pessoa, tocável, sensível, humano entre os humanos.
Lembro-me também do professor de Desenho, o professor Luciano, franzino mas bonito. Lembro-me bem de não ter jeito nenhum para fazer desenhos mas de me esforçar ao máximo para fazer uns rabiscos giros, tamanha era a minha vontade em lhe agradar. Miúdas parvas, era o que nós éramos. O professor Luciano chamava-nos e nós levantávamo-nos do estirador, de rosto baixo e corado. Se alguém dizia alguma coisa entre o trajecto que ia do nosso lugar até à sua secretária, riamo-nos de nervos, disfarçando  como podíamos que sermos chamadas ao professor Luciano era um momento especial.
Lembro-me ainda da professora de Biologia, que adorava a minha escrita e que me dizia que nunca tinha tido um aluno que escrevesse tão bem como eu, pena eu escrever coisas tão desacertadas. Dava-me muitas negativas nos testes, mas eu sabia que ficava com pena de mim, por eu escrever tão bem.
Lembro-me da sala dos professores ser uma espécie de divisão interdita. Hoje estava aberta e disponível. Está bonita, com um mini bar, mesas e cadeiras e uma decoração de salinha de estar.
Lembro-me de haver espaços  verdes à volta da escola, de os meus colegas se perderem por ali a fumarem ganzas e de eu os ir chamar. Eu não fumava, não por não ser potencialmente desajuizada como os outros, mas porque tinha medo de gostar. E o remédio era não experimentar. Lembro-me de eles quererem fumar calmamente e faltarem às aulas e de eu lhes pedir que não o fizessem, para não chumbarem por faltas. Dizia-lhes que fizessem como eu, que simplesmente desligava a atenção da aula quando não me apetecia estar ali.
Lembro-me de a minha turma ser a primeira a ter aulas de Teatro e de vibrarmos com a novidade. Lembro-me de o professor de Teatro ter sido o primeiro e único professor a abandonar a sala de aula, por causa do nosso comportamento desadequado. O comum era os professores mandarem os alunos para a rua quando não se comportavam bem. Aquela reacção absolutamente inesperada do nosso professor de Teatro fez-me ter medo que ele não voltasse. Foi um sentimento especial e raro. Nunca tinha sentido antes que um professor poderia simplesmente não voltar, por nossa culpa. Lembro-me de, na aula a seguir, estarmos empoleirados no corrimão do corredor, espreitando ansiosos a sua chegada. Portámo-nos muito melhor a partir desse dia.
Lembro-me da minha professora de Português. Ainda me lembro do seu nome completo: Maria Helena de Freitas Lindo. Era uma senhora diferente de todas as outras. Era magríssima, velhíssima, pequeníssima. Tinha feitio de trovão e um cabelo cinzento muito curto, cor de céu em tempo de chuvadas fortes. Era muito cínica, mas acho que abusava dessa característica por pura pedagogia.
Nós punhamo-nos à boleia para o liceu e a professora Maria Helena de Freitas Lindo também. Era uma delícia, vê-la a acenar aos condutores de dedinho muito esticado, nas suas calças de napa preta, como uma estrela de rock envelhecida e muito digna.
Lembro-me de a adorar e de me rir das suas palavras menos agradáveis, talvez porque adivinhasse a sua dureza ensaiada. Mesmo quando me dizia coisas menos boas, nunca lhe levava a mal. E nesse tempo (como agora) lembro-me de ser fácil ferir-me com palavras difíceis de ouvir.
A professora Maria Helena de Freitas Lindo exigia a verdade, sobretudo quando os alunos inventavam desculpas que entendia como esfarrapadas. Dizia que nos faria o mesmo que fazia aos filhos, quando pequenos: cheirava-lhes a cabeça, para ver se lhe cheirava a mentira. E era assim, cheirava a cabeça de alunos que se deixavam aterrorizar pelo faro das suas narinas, Eu ria-me, talvez porque a mentira não fosse especialidade que eu tivesse necessidade de experimentar.
Mas a coisa mais importante que a minha professora de Português me ensinou, aprendi-a eu a propósito de me ter pedido uma opinião. Eu tinha sempre ideias muito próprias, mas recordo-me de a colega que falou antes de mim ter dito algo com que eu concordava em absoluto. Arrisquei então em experimentar uma expressão que nunca tinha usado, convicta de que seria uma resposta imponente:
"Faço minhas as palavras da colega!"
 Não faz nada! A menina nunca pode fazer das suas palavras as palavras de outra pessoa, porque cada pessoa é uma pessoa, cada pessoa expressa-se de uma maneira singular. Eu nunca mais quero ouvir isso! Diga, por favor, o que pensa.

Nunca mais foi de outra maneira. Nunca, nunca, nunca mais na vida, professora Maria Helena de Freitas Lindo. Velhinha que estava, já não a verei à boleia de calças de napa em lado nenhum, mas asseguro-lhe, professora, que tenho feito dos meus dias momentos cheios de ideias próprias, por escrito, na oralidade, no interior da minha cabeça. E realmente, independentemente dos resultados, não me parece que haja melhor forma de estar. E poderia cheirar-me a cabeça, que cheira a verdade.






segunda-feira, 14 de março de 2016

Agora não estás, exactamente como nunca estiveste, e eu pergunto: o que faria eu sem ti?
O mesmo de sempre, pelas esquinas de uma liberdade quase absoluta.

quarta-feira, 9 de março de 2016

Hoje, no Chiado, estavam fortes, as comemorações do dia da mulher. Uma resma de outdoors em volta da estátua de Camões, histórias de mulheres que deixaram de respirar, vítimas de um tempo em que se celebra num dia a existência das pessoas, e nos dias que se seguem espancam-nas até ao esbater do mais assustado dos ais. As vítimas de maus tratos, ali expostas as histórias que se resumiram precocemente no tempo , as fotos dos cenários possíveis, o quotidiano do nosso século a jorrar História numa das praças mais movimentadas da cidade.
Vinha depois a menina que oferecia flores rechonchudas a todas as mulheres que passavam, mas o Camões estava triste, como um cemitério no meio da capital, e a gente passava por ali, lia uma ou duas histórias e não queria ver mais, apressava o passo como quem de repente deixou de ter algo para comemorar, e interrogava na mudez gelada o que é esta coisa de ser mulher, o que é esta coisa de ser pessoa, e ao que andamos nós aqui.

terça-feira, 8 de março de 2016

Que saberás tu agora do medo de não existir? Terás tu o medo que eu tenho? Sentirás tu que a tua ausência será a nossa ausência e a minha eterna e dorida dormência? Sinto-me mãe através de ti, e não é essa patetice das impossibilidades cronológicas, mas a doidice de querer segurar-te na mão e assim impedir que tu partas, é este desejo de falar-te mansamente e perpetuar o sorriso que nos isola do mundo, como só nós sabemos da existência de uma e de outra, árvore de um único fruto.

quinta-feira, 3 de março de 2016

Ausento-me alguns dias para pensar na vida, e não consigo pensar muita coisa de jeito, porque vejo poucas coisas que jeito tenham.
Mantenho ainda os amigos, que me aturam umas vezes com prazer e outras vezes por uma espécie de fidelidade que os impede de me mandarem bugiar. Se não fossem os amigos com quem desabafo sobre as ausências inconcebíveis e as existências abomináveis, nem sei de quantos manicómios me veria já escorraçada.
Vivam então os amigos, os que se desnorteiam pelos acontecimentos que os põem tristes e aflitos, mas que têm tempo para mim; os que estudam que nem uns desalmados e que nos intervalos das sapiências continuam a achar que falarmos ainda é uma boa escolha; os que me enviam mensagens quando eu estou distante e me fazem acreditar que torcem por mim; os que desejam que a força esteja connosco; os que se riem comigo nos intervalos das sofridas dúvidas amorosas; os que já não estão por aqui mas que renascem sempre que me fazem pensar que o mundo seria bem pior se não nos tivéssemos cruzado nas ruas deste planeta; os que acreditam   que um sentimento bom e a partilha dos momentos ainda é a forma mais possível de estarmos juntos.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Gosto disto, sei lá. Gosto de chegar, que me metas na ordem para que não haja dúvidas sobre quem manda aqui, gosto de te ignorar como quem não ousa olhar a superioridade a direito e que tu depois venhas com falinhas mansas, como quem deixa de se alimentar do comando. Gosto mesmo disto!

domingo, 14 de fevereiro de 2016

É chegado o momento em que a falta a respiração me ataca e a reanimação terá que ser feita com um golpe de aventura. Levem-me daqui para um lugar distante da pobreza do dia-a-dia sem esperança, porque eu morro com a ausência do sonho, e não quero ainda acabar-me.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

A família é a coisa mais importante que tu podes ter. Não precisas de estar sempre com a família para sentires que a tens. A família conhece o berço onde nasceste, sabe a pessoa que tu és e nunca duvida de ti. A família não te aponta dedos quando tu mais precisas de um abraço. A família entende-te com um olhar e conhece o significado do tom da tua voz. A família sente-te e sabe o que sentes. A família, muitas vezes, demasiadas vezes, não inclui os que têm o teu sangue.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Sempre que a paz me visita, faço do regresso a casa um motivo de passeio. Sabe-me bem, este deixar do trabalho no trabalho, deleitar a vista pelas pessoas e pela noite que alumia os espíritos. Sinto-os à minha volta, a cirandarem à minha volta, e gosto...
O mundo é simples e bom, quando coexistimos num acto de compreensão espontânea, só porque sim, porque estamos bem.
As regras dizem que os passeios são um espaço de passagem, e eu concordo mas, à noite, os passeios são aglomerados de pedras amaciados pela estagnação dos que não têm nada a fazer, a não ser aproveitar o tempo para dar despreocupação à vida. Deixo-os estar parados no passeio, a empatarem o meu caminho,... e que mal é esse, quando tenho um pedaço de alcatrão por conta dos meus pés? Passo na estrada e estendo-lhes, sorrateira, a tangência do olhar.  Vejo o grupo dos amigos, uns três a decidirem o melhor caminho para chegar além, uns dois mais afastados, enlaçados em beijos que dançam entre o mimo e a quentura do amor ainda fresco. O caminho é por onde for, e os amigos que os levem, que o destino já o sabem e o caminho pouco importa.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016




Pediste-me hoje que tirasse uma fotografia para te oferecer e eu quis fazer o meu melhor. Estava eu na Graça a passear-me em busca de um bom motivo para fazer um click, e o disparador da minha máquina avariou. Uma semana sem máquina, pago o que devo e abraço-a de novo. Estou assim, não vale a pena chorar o que acontece quando já tenho em mente que terei um final feliz, ... eu e a minha máquina... 

Vou contar-te uma história, uma boa entre as possíveis. 

Era uma vez um pássaro que vivia à beira rio. Durante os primeiros anos de vida foi feliz, porque lhe bastava a contemplação da liberdade do rio. Qualidade de vida, era a sua! Adormecia todos os dias aninhado numa janela centenária do Terreiro do Paço, abria os olhos aos primeiros raios de luz, abria as asas num espreguiçar dali até ao céu e punha-se a andar, vaidoso e dengoso até às margens da cidade. Certo dia, porém, acordou triste com a sua vida. Sempre a mesma liberdade é coisa que aprisiona, pensou ele. E é. 
Nesse dia, andou por outros caminhos. Viu coisas bizarras e nem sabia o que pensar. Um pássaro estampado numa parede sem se mexer? Que raio de animal tão estranho, e cheio de dentes ou o que raio era aquilo? Cabelos no céu muito quietos a contemplarem a terra? Uma gaiola vazia e dois músicos a tocarem a liberdade dos que se soltaram? Isso sim, fez-lhe sentido. 
Nessa noite voltou feliz e contente ao Terreiro do Paço e, quando deu por si, adormecia contente. Que bom que tinha sido aproveitar a sua liberdade para sair de si próprio, ver coisas que não tinha entendido, intrigar-se com isso, questionar-se se os voos fazem sentido, e de repente encontrar respostas felizes, que satisfazem andanças e voos. 
Amanhã voltará a voar. Depois de amanhã também. E todos os dias será assim, até que tenha asas,... e terá sempre asas.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Se tu podes deixar que te saiam do peito as palavras e as emoções, se tu podes rir até contorceres o abdómen da dor que o prazer te provoca, se olhas à tua volta e os outros estão exactamente como tu, será difícil que te sintas só.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Saí de casa animada, hoje. Voltei um pouco a ser como as pessoas normais, que trabalham cinco dias por semana e aproveitam os outros dois para fazer coisas que lhes dêem prazer. E foi com um sorriso que saí de casa, hoje, e apanhei o eléctrico para ir até à Graça, passear-me e tirar umas fotografias.
Abeirava-me eu da paragem do eléctrico quando reparei que um rapaz me sorria e eu não sabia quem ele era. Achei estranho, mas depois percebi que eu vinha a sorrir e o meu sorriso chamou a sua atenção. Quando eu passei por ele, disse-me que eu era linda e eu fiquei sem saber se me havia de valer da nova lei do piropo ou se havia de deixar de sorrir. Não fiz nem uma coisa nem outra, mas percebi que o sorriso faz as pessoas lindas. Desejei sorrir todos os dias, não para ser linda, mas para que me sorriam e me digam algo que recompense o estado de boa disposição. Não quis apanhar o mesmo eléctrico do que ele, porque não me apeteceu ir de pé num transporte atulhado de gente. O eléctrico dá-me aquela sensação boa do tosco misturado com o requinte de usufruirmos de um transporte que se tem conservado muito por orgulho e vaidade, por isso quero sempre ir sentada, a olhar as madeiras velhas das janelinhas, a olhar o guarda-freio e a pensar como é que ele faz aquilo e a coisa não descarrila. Agora existem mulheres condutoras de eléctrico e eu gosto de as ver a conduzir, porque os seus gestos são normalmente mais delicados, o que faz com que sintamos que o eléctrico anda mais acarinhado.
Estava eu em pensamentos destes e noutros mais ou menos diferentes quando entrou uma senhora, toda ela vestida de beije e de chapéu muito bem armado na cabeça. Ficou ainda mais patusca quando falou: andam por aí carteiristas ou quê? Dei comigo a responder-lhe: estou aqui eu, minha senhora, mas não se preocupe que hoje vou sentadinha.  Quando ela me sorriu, tinha no rosto a expressão de quem não esperava uma resposta. E disse: você não me mete medo, vejo bem que anda ao mesmo que eu. 
Andaremos sim, todos ao mesmo, nas azáfamas dos dias gravados nas linhas que se desenham nas estradas velhas da cidade.
No eléctrico, tenho esta sensação boa. O espaço é invadido pelas almas simples das pessoas que ali andavam noutros tempos, e elas segredam-nos a espontaneidade de falarmos uns com os outros, ainda que nunca nos tenhamos visto.
Adoro o eléctrico, os metaizinhos da máquina que me transporta, as mãos sábias dos guarda-freios vestidos de um azul muito anoitecido, as madeiras das janelas e os fechos de um metal mais do que envelhecido, as senhoras que entram e que têm boca para falar com toda a gente, eu ali sentada a ter boca para falar com toda a gente, ... deixar depois aquele reino e encontrar um castelo no meu caminho.
Haverá alguma coisa mais mágica do que este deixar-me ir até esbarrar-me com um passado que se deleita em conversas animadas com o  meu presente? Amo Lisboa. Amo-me feliz em Lisboa.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Se vires um pirilampo na paragem do eléctrico à tardinha, no lusco-fusco das doces aparições, não sou eu. Se sentires uma aragem teimosa no meio de uma tarde tórrida, não sou eu. Se pedires uma cerveja preta na esplanada do centro da praça e ta servirem com uma densa espuma roxa, não sou eu. Se pedires para fazer uma cópia de uma chave que abra os horizontes da dobra de uma esquina vazia e ta entregarem num porta-chaves com muitas luzes garridas, não sou eu. Se quiseres manter-te sério e ouvires uma gargalhada estridente, não sou eu. Se te aparecer uma nuvem morena embrulhada numa manta de retalhos multicolores, posso ser eu a adiar a chuva, e a chuva a adiar-me de ti.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

O passado é um amigo que nos visita na penumbra da nossa solidão, e como quem não aprendeu a agasalhar-se de uma matéria-prima qualquer, cobre-nos de nostalgia. Senta-se connosco. Contempla o nosso melhor bule que nos fumega o interior, acende uma lareira imaginária que nos afaga, e fica por ali, sem ter pedido licença, nem para nos visitar, nem para se despedir. É nesse ambiente de intimidade connosco que temos a noção estúpida da irreversibilidade de todas as coisas.

domingo, 31 de janeiro de 2016

Coisas simples, que renovam o ar que respiro. Agora falas menos, e dizes muitas coisas sem sentido. E eu, para manter a cumplicidade, alinho em todas as conversas, sem esforço, porque o que menos desejo é que nos estranhemos. Será isto o amor, a não estranheza dos conteúdos? 
Gosto de chegar e de ver o teu sorriso todo, onde não falta nenhum dos teus dentes. Gosto. Adoro. Abraço-te muito, recebo muitos beijos seguidos e cheiro-te. Acalmo-me como um bebé que deixa de chorar quando sente o colo do conforto. Tão bom ter-te, de qualquer forma, com qualquer sorriso e brilho de olhos. Como se me quisesses dizer que queres celebrar a minha presença, pedes-me que vá buscar duas garrafas de qualquer coisa com álcool. Vou à colectividade da esquina e trago duas cervejas sem álcool. Fazemos alguns chin chins contentes e ruidosos e sorrimos, muito! No fim volto a cheirar-te e digo que tresandas a álcool. Tu sorris outra vez, suspiras e deixas escapar um "tão bom!". Tão bom mesmo, tão bom ter-te e que os dias conservem, pelo menos, a paz dos sorrisos e o teu cheiro em mim.
Por culpa de alguém, não aprendi a amar a rotina. Desassossegam-me os dias iguais, por dentro e por fora. Desassossegam-me os dias funcionais, e a poesia a fugir, abandonando-me na esquina das coisas para fazer. Nunca quis ser uma pessoa das coisas para fazer. Anoiteço das cargas de trabalhos e não encontro os sonhos. Acho que começo finalmente a perder a minha eternidade.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Não param quietas, estas cachopas de hoje em dia! Primeiro dizem mal de toda a gente, depois querem ser amigas de toda a gente, e não há quem aguente tanta guerra e tanta paz. É a bipolaridade social. E enquanto elas se divertem assim, eu entretenho-me a esgueirar-me das amizades feitas em cima do joelho, só porque estamos todos no mesmo sítio e será suposto convivermos uns com os outros nos tempos de lazer.
Uma hora de descanso e vou a correr para os meus braços, embalo-me no silêncio que me pacifica, divido a minha refeição com as aves do jardim zoológico e sorrio para o pato gordo que não arreda pé da mesa onde me sento, sempre em busca de mais um pouco de pão. Ficamos ali os dois, tão demoradamente quanto me é possível, e convivemos no silêncio que se transforma numa forma de entendimento entre espécies distintas. Adoro patos nas horas de descanso, ... e eles a mim, numa amizade instantânea, em que é possível não dizermos mesmo nada, e estamos bem.  

terça-feira, 26 de janeiro de 2016




Continuo a não desistir de ser quem sou. Não que seja avessa a mudanças, mas não me parece que possa ter melhores princípios do que os meus. Se o caminho é a hipocrisia, vais sozinho; se eu fico mais para trás, é porque me sinto feliz assim. Se o importante fosse chegar na frente de todos, eu tinha escolhido ser maratonista.

domingo, 24 de janeiro de 2016

É bom sentir que o mundo tem dois países que me fazem bem ao ego: os Estados Unidos da América e Portugal, que são os países que abrem as janelas para espreitar o que se passa no meu blogue, sempre que publico alguma coisa. Gosto que me leiam. Gostava que falassem comigo, se vos apetecesse. Vamos trocar ideias, vamos estar vivos e falar de coisas, o que nos apetecer,... porque este espaço é de quem passa por aqui.
Boa noite!
Também é através de ti que sinto que o tempo passa. Quase meio século de existência e o tempo começa, finalmente, a passar. Sinto-o na ausência das passadas que não entusiasmam nenhuma calçada, sinto-o no virar para cá e para lá a cada nove minutos de um despertador embirrante, sinto-o a passear-se entre a escuridão do cérebro e as papadas que se desenham por baixo dos olhos. Sinto-o. O tempo. Mas é uma dor como uma moinha, uma dor como se eu fosse alguém que vai perdendo as forças para sentir a dor com aquela força que dói sempre muito.
Telefonaste-me ontem, mais uma vez, e a tua saudade enternece-me sempre. Quisesse o tempo puxar a fita até outro momento, e um telefonema teu seria um terrível sentimento de perda. Agora não. Ligaste-me ontem e eu senti que é bom ter encontrado uma outra forma de te sentir, e sinto-me mais especial hoje quando te lembras de encurtar a distância do que quando era possível sermos completamente olfacto e toque, desejo e visão.
Falámos tantas coisas, pretextos em forma de palavras que encurtavam o caminho até nós. Sempre nós. Sempre a loucura que alvoraçava os corações. A loucura. A loucura no rosto que se transfigurava na paixão de todos os beijos, a loucura nas encenações que fazíamos só para nós, a loucura na gargalhada doida que desenrolava o sexo num tapete coberto pela felicidade de viver, a loucura quando não te podia ver de manhã porque me lembrava que a ausência seria grande no descer das escadas que me arrastavam da tua casa à tua rua estúpida, cretina e vazia de ti, a loucura quando me tinhas nos braços (e tu nos meus!) e me dizias de repente que não haveria nem mais uma noite para o nosso amor, a loucura na avalanche de palavras cruas com que enchia a caixa do teu correio electrónico, a loucura quando te imaginava de corpo perdido pelos bares, entre copos e curvas loucas, a loucura quando me dizias que fosse, e eu ia de sorrisos na auto-estrada, o caminho todo, e não havia quilómetro que me impedisse, a loucura quando ficávamos muito sensuais, eu imaginava sempre que havia um câmara man a filmar-nos, e assim eternizaríamos todos os momentos, a loucura quando íamos ao bar da vila, bêbedos e loucos, e eu, sentindo-me o mais energizado dos seres humanos, chamava a atenção de todos os homens. Tu não gostavas nada e eu não gostava que não gostasses, porque eu só queria que me acompanhasses na alegria de me passear pelo mundo contigo, fosse por onde fosse. A loucura. Sinto que poderia escrever uma vida inteira sobre a loucura que sou eu quando tu te passeias pela minha vida, nem que seja pé ante pé.
Ontem, quando o telefone se desligou, tu foste da cozinha ao quarto onde te deitas sempre e te aninhas num colo que escolheste para ti e eu deitei-me mais na cama onde já estava ao pé de ti. Poderia ter dormido só, pois podia, mas quando me aconcheguei no aconchego que o meu corpo me dá, parte de ti, que seria certamente mais do que a metade de ti, amanheceu no meu leito uma noite inteira e eu acordei outra, como sempre.

Sinto que já nem preciso que estejas para que estejas sempre. E eu vou-me pincelando de vida e o coração bate um bocadinho mais depressa, a boca aperta-se em pensamentos, os olhos acendem-se do bálsamo com que me inundas a alma, ...  e o tempo passa.

sábado, 23 de janeiro de 2016

Adormeço todas as coisas que quero e vivo muitos momentos seguidos como todos os animais que hibernam, mas quando se solta a respiração das tuas palavras,... é sempre a mesma tontura!

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016





Às vezes não tenho nada para dizer, senão a véspera de um dia cheio de azáfama. Não gosto da azáfama que me espera e que finge dormir. O sono parece um cavalo a galope, sacudindo-me da montada. Queria um dia bom amanhã, daqueles como chocolate Pantagruel derretido a escorrer pela garganta, devagarinho, aconchegante, quente e aconchegante. Quando virão os dias assim? Como conciliar a urgência com a paz? Alguém que me explique e que me sussurre, e pode ser durante a noite. Juro que ouvirei mesmo dormindo, juro que acordarei a sorrir.

sábado, 16 de janeiro de 2016

Nunca me tinha ocorrido antes como a intimidade pode vir da ficção, mas pode. Há um momento da nossa vida em que somos tão íntimos,.tão íntimos, que nos telefonamos a propósito de nada. É o caso de um amigo, que ultimamente me telefona para me contar os seus sonhos. E eu escuto-o atentamente, porque de repente me parece que tão digna de atenção é a realidade como a ficção.
Sabes Zu, hoje sonhei que tinha um hotel e que a recepcionista não tinha orelhas a medir. Atendia telefonemas a trás de telefonemas, e cada trim era uma reserva.
Olha que bom, vês? E depois?
Depois acordei!
E o hotel? Nada?
Rimo-nos bastante, porque ser amigo também é rirmo-nos com as nossas tolices.
Depois vem a minha mãe, com quem me tenho alargado bastante nos temas de conversa.
Sabes filha, agora ando doida é com o lince Ibérico,...
Ah sim?! Então?
É. Começo a falar com ele em Espanhol. Ele não me diz nada, mas fica muito agradado de eu falar em Espanhol com ele.
Mas isso foi quando?
Tás parva? Foi esta noite. Sonhei com o lince Ibérico. Estou apaixonada por ele. E ele deita-se ao meu lado e eu digo que se chegue para lá.
Hum,... não digo, mas serão as saudades do gato zaragateiro que te trouxe da união zoófila, aquele das orelhas dentadas em sinais de rebeldia, que dormia ao teu lado e,.enquanto isso, se convertia na alma mais pacífica da tua casa,...
Apetece-me de repente sonhar, mas um sonho forte que encha os bolsos do meu amigo de moedinhas, um sonho que encha também de afecto o coração da minha mãe,...
Já sei, esta noite sonharei que o meu amigo tem um hotel de animais em Lisboa, com vista para o Cristo-Rei, e a recepcionista vai receber uma chamada de um lince Ibérico, reservando a suite presidencial para a lua de mel da sua filha, que se casará no dia 8 de Agosto. Não. já sei. Reservará também uma totalidade de 9 quartos, para os convidados que vêm de longe. Depois convido a minha mãe para beber uma cerveja preta na esplanada e ela conseguirá ver a miss lince Iberica, passeando-se com seu noivo de braço dado, seguida dos convidados e do fotógrafo que registará aquele momento diante dos nossos olhos, ali mesmo, no Miradouro do Adamastor, enquanto matamos a sede e enchemos a boca de espuma fresca.
Amanhã, serei eu a telefonar-lhes contanto o sonho em jeitos de realidade e, quando perceberem que lhes falo de ficções, voltaremos à risada, como.sempre,... e talvez eles compreendam que a amizade não dorme.
  

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016





Às vezes saímos de casa para cuidar da vida, mas com aquela sensação que o dia não vai ser dos melhores, não vai cumprir as nossas expectativas, não vamos MESMO resolver nada. Mas é nestes momentos que precisamos de serenidade e, se for preciso, vamos até ao ponto de arranjarmos uma espécie de jogo connosco mesmos, para nos entretermos, para não sermos apenas objectivos.
E foi assim que depois de ver aquela senhora que mais me parecia uma linda boneca de chocolate, resolvi que Lisboa é amarela. E é, e foi, Lisboa hoje foi especialmente amarela, só para me contentar, e havia nela um qualquer sol que, apesar de ter mesmo adivinhado que o dia não cumpriria os meus objectivos, aqui estou eu serena, a usufruir da paz das cores e da alma.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016










Hoje houve um rapaz peruano que me fez um pedido, e esse pedido fez-me sentir feliz e muito responsável pela resposta que lhe daria. Queria que lhe indicasse lugares de Lisboa que o inspirassem. Assim, do nada, só em meia dúzia de palavras que trocámos. A primeira coisa que me ocorreu foi: que fantástico alguém que não conhece o outro aventurar-se numa questão destas, que me parece pressupor uma sintonia do deslumbramento. Abriu tanto os olhos enquanto esperava pela resposta, mas era um abrir de vista não de quem vê, mas de quem tem muita sede. Que bom haver pessoas que se manifestam desta maneira, que viajam assim, com este espírito, com este sonho, com este querer dos sentidos. Na verdade, é sempre isto que procuro quando viajo, mas nunca me tinha ocorrido esta consciência, que se materializou no brilho de um olhar.
Não quis errar, e perguntei-lhe que tipo de coisas o deslumbravam.
Não sei, diz-me tu.
E falei-lhe não dos sítios, mas dos caminhos que le
vam aos sítios, talvez para lhe dizer que concordava que o deslumbre começa na forma como caminhamos para algum lugar.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016




Luz Indo

Demorou os lábios sobre a chávena de café, como quem encontra um lugar para pousar um pensamento demorado. Sim, a crise, a risota que se inventa todos os dias para entreter um sentimento de pura solidão. Mais um dia, mais um monstro de força a abrilhantar-lhe o olhar. Para hoje, uma entrevista de emprego que a conduzirá a um tuk tuk, entreter estrangeiros, passear o tempo, falar a língua dos outros, rir com o entusiasmo dos outros, conduzí-los pelos becos, entretê-los, assegurar que o dia lhes sorri hoje e nas memórias que se guardam para sempre.

- Terá que aprender a conduzir. Terá que ter vontade, nada se faz sem vontade. Começa às nove e meia, e terminará pelas oito e meia da noite.
Quinze minutos, quinze euros, trinta minutos, trinta euros e dez por cento de comissão.
- Com certeza que sim.

Riu-se com os olhos, com os dentes e mandou-a passear estrangeiros. Uma paisagem tão bela a desmoronar-se à sua frente com o toque horrendo dos outros a explorarem o mundo e a desfazerem as energias positivas que se inventam todas as manhãs, mas tudo se remediará com o rever da beleza das coisas. E começa desesperadamente à procura do belo como quem tem muita sede. E encontra, sim, encontra uma flor perdida e imponente no Miradouro de Santa Luzia e pensa que as flores nunca se descabelam, por muito que o vento lhes sopre. Fotografa a flor, guarda a flor na memória sem o arrancar de uma única pétala. Volta-se de costas para o rio e é feliz a porta verde daquela casa de bugigangas, especialmente decorada para turistas.

- Queria uma mala destas que têm muitas cores, mas daquelas que se põem à cintura.
- Pois, dessas não tenho, porque estas são feitas para turistas, que as usam ao ombro.
- Podiam ser feitas para usar à cintura, e asseguro-lhe que também eu sou uma turista. A diferença, é que me passeio em círculos, como quem tem que cumprir em si mesmo uma forma perfeitamente geométrica. E é você que faz estas sombrinhas bordadas e coloridas?
- Não. Vou mostrar-lhe o que faço.
- Você fotografa a realidade vista do ângulo que embeleza a vida. Tudo o que você vê é guardado num click raro: as sombras, os brilhos, o momento em que o mundo se move e o seu olhar atira as coisas para outras dimensões. Também tiro fotografias, mas não é assim.
- Podíamos fotografar juntos.
- Sim, tenho apenas um amigo com quem partilho a intimidade das captações raras, mas poderei tentar fazê-lo consigo. Talvez sejamos capazes de o fazer com o respeito que se exige.

Durante muitos dias, ela procurou empregos decentes como quem não acha agulhas em palheiros, mas teve a companhia certa para captar a beleza das coisas.
E um dia, quando se passeavam animadamente pelo Miradouro de Santa Luzia, havia por lá uma flor imponente que se contorcia para os ver passar, registava esse momento, e não lhes roubou uma só das pétalas que lhes adornavam o ser.

domingo, 10 de janeiro de 2016

Há verdades que matam, sentimentos que degeneram. Há dúvidas que moem, e moer é uma espécie de morte, também. Começou há poucas horas a cerimónia fúnebre que aconchegará a  consciência do lugar que ocupo no mundo, tão distante do que sonhei ser, tão distante das minhas presunções.




Os meninos são apenas pequenos, não são tolinhos. E ao contrário dos adultos, surpreendem-nos e, na surpresa, trazem-nos os nossos sorrisos de volta. E este em quem estou a pensar, tem uma cabeça fantástica, repleta de caracóis muito alourados pelo sol e, ao que me parece, os raios iluminaram-lhe o cérebro.
Tens que comprar uma casa daquelas, para eu vir da escola e mergulhar na piscina.
Essa é muito cara.
Tens que trabalhar, digo eu, que me apetece animar a discussão.
Isso mesmo, começas a trabalhar para comprarmos a casa.
Oh, mas eu não posso trabalhar.
Pois não, mas podes limpar umas coisas lá em casa e eu pago-te.
Mas se me pagas, ficas sem dinheiro para comprarmos a casa.

Sem dúvida. Uma lógica que lhe vem à cabeça, de forma clara e imediata. O menino que gosta de matemática, e que a aplica tão bem na vida prática. Eu, na idade dele, andava sempre às voltas com as letras e fugia das reflexões lógicas como podia. E uma conversa destas serviria certamente para escrever sobre o tédio da limpeza da casa, pensamento a que, aliás, me mantenho fiel.
A moral da história, como convém nestas histórias que trazem crianças, é que continua a ser menino quem deve ser menino e continua a ser mãe quem tem sido mãe, com toda a carga de responsabilidade que lhe compete.
Entretanto, eu torço para que eles possam mesmo ter a tal casa, só para que a piscina se assegure de um mergulho diário.

sábado, 9 de janeiro de 2016




Ligaste-me hoje à noitinha, naquela surra do intervalo das conversas com a lua. E como estou? Preciso de alguma coisa? Não preciso, não, não preciso de olhar os teus olhos a rirem-se com os meus, como eus fundidos que se desenlaçam em ternuras. Mas diz-me, precisas de alguma coisa? Não preciso, não, não preciso de fazer das conversas as poesias do silêncio. Mas diz-me, precisas de alguma coisa? Não preciso, não, não preciso de voltar a lembrar-me dos desejos escorregadios nas ombreiras das tuas portas.
Precisas de alguma coisa? Não preciso, não, não preciso da pureza da mentira, extracto de gaveta atulhada de verdades encafuadas.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

 
 
 
"- É onde gostam de morar os feitiços: nos olhos. No dia em que conheci a sua mãe, os nossos olhares cruzaram-se com tal paixão que você, Imani, você nasceu naquele exato momento."
Mulheres de Cinza, Mia Couto


quinta-feira, 7 de janeiro de 2016




DA SOBREVIVÊNCIA

Trabalho menor, é todo o trabalho que nos mata por dentro. Estou agora a ter uma formação para fazer um trabalho menor, e só não me vai matar de todo, porque acredito que será temporário. Já fiz outras vezes este tipo de trabalho e sei ao que vou. Um mês de formação remunerada que não paga o esforço em que me sinto, e ainda só vou no segundo dia.
Na minha turma, felizmente, parece não haver ninguém que bata certo do miolo, e ainda bem!, mas somos todos contidos,... menos um...
Na sala do lado, está uma turma de gente amorfa, em vésperas de se meter dentro de um caixão e abalar desta para melhor. Credo!, que me agonio, cada vez que passo por eles para fazer um intervalo. Hoje, com esperanças que aquela gente não estivesse assim devido ao estado de avanço da formação, chutei para a minha formadora:
- Estes colegas aqui da sala ao lado são diferentes, não são?
Abanou um sim quase tímido e eu percebi que eles não representam a evolução normal do nosso estado de espírito, à medida que a coisa avança. Ufff!, que bom.
Mas, como eu fui dizendo, somos todos contidos menos um...
O Rui é um adulto que não cresceu o suficiente para aturar o lado mau da vida com expressão sisuda. É desadequado e faz-me rir com muita vontade. Mas tem sentido de oportunidade, porque me anima sempre que estou à beira de um ataque de nervos. O seu sangue africano não o deixa encobrir que gosta de damas e, no primeiro dia, lá se metia descaradamente com uma coleguinha tímida, e arrancava os sorrisos dos homens europeus, naturalmente sempre mais contidos nas suas abordagens. E diz que se os clientes o ameaçarem estará preparado para lhes bater à porta em modo agressivo, porque afinal,... somos ou não somos da margem sul?
Eu não sou da margem sul, mas serei dali mesmo cada vez que me irritarem, e vou lembrar-me sempre do Rui cada vez que o trabalho me correr menos bem, porque o que é desadequado socialmente, é muitas vezes o bálsamo que nos faz anestesiar a pele, atenuando a irritação causada pelo mundo a tocar-nos.
Benditos todos os Ruis desadequados, e mais o trajecto de metro até casa, sobretudo quando a viagem deixa de exigir que eu converse com o último colega que saiu no Marquês (o Sebastião José que o ature!). Bendita a calçada lustrosa que conduz à minha rua. Bendita a chave que encontro na mochila e continua a servir na fechadura que dá acesso à minha escada. Bendito a chave que faz chiar a porta de entrada, e mais o cheiro calmante da casa. Bendito o Pedro que já me ligou para me dar aquela palavrinha diária que me faz bem. Bendita a comadre que me liga e que se ri comigo das desgraças em que nos metemos. Bendito o computador e mais as estatísticas que me dizem que alguém leu o meu blog na minha ausência. Bendita a chaleira ao lume numa chiadeira que promete um chá quentinho e mais a cama onde me deito, beberico, escrevo e durmo.
Amanhã acordo de novo para mais um pingo de morte passageira e renascerei aqui outra vez, aqui e no início do regresso.
Enquanto os dias acabarem no renascimento e enquanto houver um Rui a colorir o desbotado dos meus dias, algo me diz que sobreviverei.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016




Se há coisa que eu gosto, é de ter nascido numa casa de benfiquistas. Desde cedo aprendi que o Benfica é que é. E sim, talvez seja uma das poucas coisas que nunca questionei. Faz hoje dois anos que Eusébio não conseguiu ver o enorme cortejo fúnebre que o seguiu, feito de gente que realmente o amou, talvez por ser grande, talvez pela quantidade de vezes que terá feito renascer em nós o orgulho na nação. Este foi o texto que escrevi neste dia terrivelmente especial. Passaram dois anos, mas rei que é rei, não precisa de estar entre nós para ser grande,... sempre. Saudades de Eusébio, agora do seu sorriso, de o ver e de o saber entre nós, a torcer pelo Benfica, connosco, sempre! Lembro-me bem da temporada de invencibilidade do Benfica após a sua morte, e de sentir que seria ele a dar uma mão, naquele pedaço de céu que recebe o Estádio da Luz.



AINDA O EUSÉBIO, O PANTEÃO E A NOSSA FALTA DE CULTURA, "BENZÓSDEUS"

Não há nada mais triste do que uma pessoa triste ter que se irritar de repente, por parecer que alguém lhe quer tirar o direito de sentir um momento, como se alguém tivesse o direito de desviar as nossas emoções.
Aconteceu-me hoje ir para o trabalho, quando na verdade me apetecia ir até à Luz, tirar aquela fotografia extraordinária à estátua do Eusébio coberta de cachecóis de algumas "nações", que era coisa que me tinha comovido de facto.
Estava eu a conduzir, mais engarrafada nestes pensamentos do que no trânsito mais ou menos lento, quando me chega a notícia que me revela que, afinal, Eusébio foi um homem bom mas inculto. Não sei se ser culto será pôr uma mancha negra no sentimento de um povo no momento em que ele sente a tristeza de um amor que parte. Não sei o que é cultura, de facto. E eis que me sinto de repente mais feliz, porque Eusébio também não sabia o que era cultura porque, como eu e como a maioria dos portugueses, nunca pisou a bandeira que anuncia este país, nunca deixou multas de estrada para o estado pagar, nunca teve segurança policial à porta com o dinheiro dos nossos impostos, nunca sustentou fundações com dinheiro previsto no orçamento de estado,... nunca foi culto, portanto!, nem ele, nem eu, nem a maioria dos portugueses.
Então estamos uns para os outros, eu, o Eusébio e a maioria dos portugueses, e já que nalgumas coisas ainda parece que se cumpre, de vez em quando, a vontade de um povo, que ele vá para o Panteão, aproveitando a morte da nossa Amália, que fez rever as disposições legais que regulamentavam as entradas vitalícias dos ilustres do nosso Portugal.
Na verdade, até Amália, apenas se sepultavam no Panteão as personalidades mais distintas da política e da literatura, gente de inestimável valor mas tantas vezes tão distantes do nosso quotidiano, dos nossos gostos e dos nossos afectos. Das duas vezes que visitei a Igreja de Santa Engrácia, apenas o túmulo de Amália se encontrava coberto de flores, um pouco como a sua própria casa... e os outros, tão despidos de ornamentos, como se se tivessem esquecido de fazer a boa acção do dia... Por isso, que Eusébio lhe faça companhia, como o futebolista que será sempre falado às gerações vindouras, como o homem que tantas alegrias deu a um povo quase sempre triste.
E que os Presidentes da República continuem a ir para lá também em devida altura, não sei se tanto pelo cargo que ocuparam como pelo direito que adquiriram pelo facto de a obra de se lhes pôr tento na língua se assemelhar a uma obra de Santa Engrácia...

Fui ao Camões pela manhã, beber um café no quiosque, ver os amantes do ar livre, que nem o frio os põe a milhas. Umas quatro mesas vagas, sentei-me numa, bem perto de uma mesa de espanhóis. Gosto tanto de ver estrangeiros pela manhã... fazem-me sentir que viajo. Uma mesa quadrada de ferro e três cadeiras ocupadas. Um velhote que lia o jornal, uma miúda que bebia um café solo e uma outra mais acordada que os outros, de telefone convincente na mão, falando em espanhol rápido como só nuestros hermanos sabem fazer, e que lhe encantam as ilustrações, e que queria aprender, e que gostaria que a aceitassem só para aprender. E estava em Portugal, vivia em casa de uma amiga, e gostava tanto de aprender a ilustrar. E era tanto o encanto e a humildade com que perguntava se ustedes me aceitam, que não terá havido como negar.
Desligou-se o telefone e abanou-se com os solavancos  da menina, que fazia pular a cadeira de contente.
- yesssssss, disseram-me que são uma editora pequena, mas terão todo o gosto em receber-me!
Que conho que falava também um Português como o meu. Olhei para o Camões para me certificar que ele tinha visto o mesmo que eu, e ele nem se mexeu, tão perplexo que estava.
Estamos realmente num país em que se favorecem os estrangeiros e teremos todas as vantagens, se formos bilingues e se nos valermos da graça de podermos ser estrangeiros.
E eu, que ando à procura de trabalho na minha área profissional, se calhar vou investir num curso de línguas e depois arranco uns meses para o país onde se fala correctamente a língua que eu escolher. Depois volto, faço um telefonema a perguntar if you accept me, cause it will be a pleasure to learn with you, e se for a pleasure, certanly it will be ok, porque pleasure está bem, mesmo que eu seja ignorante numa qualquer matéria, se eu tiver pleasure serei um ignorante que darei muito mais prestígio a uma qualquer empresa, do que se eu tiver apenas prazer.
É o país que temos, e quem tem charme é rei.
Uma menina de vinte e poucos anos, espertíssima, com muitas ganas de aprender, a ensinar-me, por uma via diferente da comum, que eu estou do lado errado.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016





SE PUDERES, NÃO MATES!

2047 foi um excelente ano para não morrer.

Acordei gelado e muitíssimo mais desnudado do que me lembrava de ter

adormecido.

Tudo escuro, mas havia uma pequena janela ao fundo, que se enfeitava com

rodas de carros.

Tinha frio, mas achei que não tinha nada que vestir, nem o meu andarilho, nem

o meu neto António para me ajudar a mexer o corpo. Nada.

De repente, a vista estava já habituada à falta de luz e vi muito mais do que era

suposto. Gritei, gritei um grito que vinha tão de dentro que não dei por ser eu.

Ninguém se levantou. Aqueles não acordaram mais.

Um rodopiar de chaves e entraram por ali adentro, batas iguais e socas de

borracha a condizer com a função. Aproximaram-se e eu morri de novo, só para

que a minha vida não os assustasse.

Começámos então a fazer tudo o que deveria ser feito, o melhor que sabíamos.

Se vinham para preparar o morto, então eu deveria estar completamente morto.

E assim me acalmei do pânico do início da minha cerimónia fúnebre.

Pensar que tudo vinha da minha juventude, sábios dias à descoberta das delícias

do misticismo. Tinha anos de solidão dentro de mim, a ensaiar a viagem do

espírito que se separava da matéria e me levava a qualquer lugar.

Pela última vez viajei e, como sempre, pus-me de espírito sobre a minha

imagem.

Vestiram-me os boxers que a Ana me deu no Natal. Nunca os vesti, porque

estranhei passear-me com renas coloridas encostadas às partes mais sagradas

que um homem tem. E que mais? Olha!, o célebre fato que ficou por vestir no

sábio dia em que a minha filha Manuela não se casou. E sapatos,  meias novas…

Nem sei se alguma vez me senti tão mascarado. Mas às vezes os nossos adoram-

nos de uma forma muito pouco condizente com a nossa essência, e assim nos

dignificam.

Aceitei tudo, porque morrer é também delegar vontades nos outros.

“Morrido” que estava, lá fui eu e eles para junto de uma cova bem funda.

Quanto mais o meu corpo se aproximava da terra, mais lhes nascia a consciência

do fim de todas as coisas.

Afastei-me.

Quanto mais o meu corpo se aproximava da terra, mais me empenhava em

espírito numa forma de lhes falar sobre a relatividade dos desfechos.

Ninguém acaba.

Ninguém que seja parte de nós.

domingo, 3 de janeiro de 2016





Estou a ir, meu amor, com toda a calma deste mundo, só para castigar estes braços, sempre com pressa de te abraçar.



O melhor da vida não é gostar das pessoas, mas sim poder transmitir-lhes sentimentos. Gostei especialmente daquele momento em que as mãos se enlaçavam mais e mais, ao som das palavras... até o rio e as luzes amareladas que nele se reflectiam pareciam mais agitados pelo som das palavras. Depois, as palavras explodiram num abraço. As palavras que explodem em abraços, são as mais balsâmicas de todas as palavras.
Nunca se sabe é se é o rio que traz as palavras na corrente, ou se é a corrente de palavras que chama a consciência de se estar ali, junto ao rio.

sábado, 2 de janeiro de 2016




Combinaram passar o final do ano juntos. Um jantar a dois, uma passagem pelo Terreiro do Paço, sonhos com cores de artifício e mil promessas para cumprir nos próximos 365 dias.
Um telemóvel que apenas aprendeu a tocar, uma resma de mensagens sem resposta, o mundo a desvanecer-se e uma necessidade súbita de continuar a noite, tocá-la a duas mãos.
Entrou no restaurante e era a única pessoa só. Sentou-se na mesa e olhou em volta. Todas as pessoas brindavam, todas as pessoas conversavam animadamente, todas as pessoas encontravam a felicidade no convívio estridente. Pediu a refeição e conviveu animadamente com dois copos de vinho branco. Usufruiu do silêncio necessário para dispensar a sua atenção a um maravilhoso Shahi Paneer, repasto indiano de queijo com um molho de especiarias capaz de elevar um barco aos céus. Depois, procurou a calçada que a levou ao Terreiro do Paço, abeirou-se do palco e viu Luís Represas a cantar. Cansado, descaído, sem um pingo de passagem de ano que lhe animasse o corpo. Eventualmente, também alguém lhe teria falhado nas expectativas, ou a vida, ou alguma coisa que teimasse em não vir ao seu encontro. Cantava, mesmo assim, e dizia que "ser poeta é ser mais alto". Apeteceu-lhe proibi-lo de cantar uma música assim, tão diferente lhe pareceu o estado de espírito do cantor. De repente, pensou que tinha muito mais sorte do que o Luís Represas, porque não tinha que expor a sua tristeza perante ninguém, tão invisível se sentia no meio da multidão.
A noite foi correndo sem magia, já não pela sua solidão, mas pela ausência da arte. Ninguém ficaria deslumbrado perante os espectáculos da noite de passagem de ano, no Terreiro do Paço. Especial, era um espaço enorme repleto de gente, umas duzentas mil pessoas, que conseguiram encontrar-se para celebrar juntas um momento a que deram uma importância sincronizada. À meia-noite ali estavam embaladas nas cores garridas que explodiam no ar, e beijavam-se, e abraçavam-se, e bebiam, e entrelaçavam as mãos para olharem o rio,...
Ela pediu aos seus passos que a levassem de volta, entrou no carro e ligou o ar quente. Quando a viagem chegava ao fim, o telefone tocou e era um amigo de voz sempre embriagante, falando-lhe da estima infindável que os unirá para sempre. Não lhe falou das coisas boas que virão em 2016. Disse-lhe apenas que talvez aquele tenha sido o último telefonema de início de ano, tão receoso se sentia da sua saúde. E essas possibilidades de perda dos que pretendem ficar e não têm como controlar as partidas perpétuas, essas é que estragam as noites e todas as horas que podiam ser especiais.
Tirou a máquina fotográfica da mochila enquanto ele falava, "clicou o mundo", porque lhe faltavam as palavras.
Quando viu as fotografias da noite de passagem de ano, descobriu que o fogo de artifício é um estranho engenho feito de lágrimas de chuva que escorregam da vidraça dos carros, com uma pitada de luzes de rua.