A culpa deve ser do senhor Carlos, que se plantou em Santa Iria da Azóia
à beira da Nacional 10, e aí vende petiscos até às duas da manhã. E a
culpa é certamente minha, que tenho ananás fresco e diurético no meu
frigorífico, e em vez de me ficar pelo saudável e natural, opto por me
empanturrar de couves, chouriços, carnes gordas e tubos de ensaio cheios
de vinho fresco e áspero. E juro que me parece uma boa opção, sobretudo
depois de um dia de trabalho em que a refeição é apenas o momento em
que me alimento de forma apressada, como se o cumprimento de regras
impostas se superiorizasse ao gozo da mastigação.
Era para ser
moelas, mas não resisti à novidade de jantar um cozido à portuguesa,
como se meia-noite pudesse ser meio-dia. Afinal, depois vinha o
recolher, umas horas no face a actualizar os treinos de candy crush
saga, tempo suficiente para a bela da digestão.
Adoro o momento em
que me sento numa tasca sozinha, peço o petisco e aguardo em
pensamentos. Só eu comigo. E estava eu nesta coisa profunda, que é a
intimidade comigo mesma, quando a figura se aproximou e se animou.
Desculpa, tenho estado a olhar para ti e a pensar. Posso dizer uma coisa?
Acho que o olhei por cima da armação verde dos meus óculos e, apesar da
cor, não fui capaz de vislumbrar qualquer raio de esperança. Mesmo
assim, resolvi dar-lhe a oportunidade que dou a todas as pessoas, porque
ainda não consigo deixar de achar que, se coexistimos no espaço,
teremos todo o direito de coexistir em palavras.
Claro. Ora diz.
É pá, é que tenho estado a olhar para ti, e és uma mulher bonita, tens
umas feições perfeitas. Mas não percebo porque estás assim
Assim?
Pois. Não é por nada, mas já pensaste como te mexias melhor com menos dez quilos?
Desculpa? Por acaso achaste que tinha dificuldade em sentar-me?
Não leves a mal, mas eu também tenho um filho assim.
Assim? Assim como?
Pois, tu gostas de comer, já percebi. Mas isso é um problema...
Um problema? Um problema é eu querer estar sossegada e tu achares que
me podes incomodar. Desculpa lá, mas eu não venho aqui para falar com
ninguém e quero estar sozinha.
É pá desculpa. Toca aí.
Não toco em lado nenhum.
Não me faças sentir mal, que eu gosto é de falar com as pessoas, tocar nas pessoas. Vou me sentir mal.
E foste sentir-te mal, sim senhora, mas pelas razões erradas.
De repente está implantada a revolução na Cabana do senhor Carlos,
largue a senhora porque a está a incomodar, senhor Carlos deixe estar,
que o cavalheiro está de saída, menina a conversa já me estava a enojar,
há pessoas que realmente parecem anedotas, este tipo é sempre assim,
mete-se sempre com as pessoas,...
E silêncio, enfim,...
Não
negaria uma conversa àquele homem, se se tivesse abeirado e me
confessado que se sentia só. Comovem-me as pessoas que sofrem de
solidão, porque ainda somos tantos humanos à face da terra que não vejo
razão para uma tristeza assim. Mas aquele homem quis salvar-me de um
problema que não é meu, como forma de se fortalecer numa ficção
desajeitada.
Quando eu digo que detesto o provincianismo, também é
disto que falo. E se como farinheiras, e moelas, e pudins dourados e
caseiros a babarem-se de molhos de caramelo, podia não ser pelo gosto da
boa mesa, mas apenas para me proteger de popularidades desadequadas.
Bebo o café, e hoje não vai o digestivo. Saio dali satisfeita, como
sempre, porque a comida ´é tão boa que me enche mais a alma do que as
desconversas.
E lá fora está um homem de polo cor de rosa, num
carro preto. Fica a ver-me passar e quando me vê junto ao meu carro,
resolve assobiar-me e fazer-me um sinal.
Oh meu Deus!, querem ver que o cozido me emagreceu?
Arranco da cabana para o mundo, onde ainda é possível sentir-me só.
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