sábado, 23 de julho de 2016

Hoje atendi o papá da menina do papá e tive saudades de um tempo que só reconheci bastante tempo depois de o ter perdido. E não é que não tenha valorizado o que tive durante o tempo que tive, é nunca ter sido capaz de imaginar a quantidade de tempo que se chora a perda, mesmo sorrindo.
O homem entrou-me pela linha adentro. Sim. O homem. A voz apenas o denunciava. A sua preocupação. A sua menina. Tudo o que importa na vida. Ela estava no meio de uma estrada sem telemóvel e ele demasiado longe para a poder socorrer. Foi nestes preparos que me entregou a sua menina. Chame-lhe um reboque e um táxi. Peça ao reboque para lhe dizer que vai ter um táxi para a ir buscar. Faça-me esse favor.
Em suma: você, que também está distante como eu, cuide dela como se fosse sua, ou nossa, o que você quiser.
Claro que sim.
A chamada seguinte, como por magia, era de um outro homem que me disse que havia uma menina que estava na estrada sozinha, de carro avariado. A mesma menina. A menina de seu papá. Pedi para a chamar e chamei-a pelo nome. Maria Salomé, tinha-me dito o pai. Não estranhou que soubesse o seu nome, como quem tem a ideia de que o mundo gira à sua volta, qual estrela de rock que contamina tudo, apenas com a sua existência.
Salomé é apenas duas coisas: a menina de seu papá e uma boneca de papel a quem dei esse nome, enquanto a vestia e despia com as minhas garridas costuras de papel de lustro. Nada mais. Mas nesse momento, era também a possibilidade de eu cumprir exemplarmente o meu compromisso com um homem desesperado.
Vai ter táxi, Maria Salomé, claro que sim. Acalme-se. Daqui a pouco estará em casa. Não agradeça, estou a fazer o meu trabalho.
E a seguir ligo para o pai, que me atende logo o telefone, e ah minha senhora falou com ela? Muito obrigado.
E fiz o meu trabalho. Um reboque e um táxi. Tudo o resto foi cuidar dos afectos dos outros, e ninguém me paga para isso. Gosto mais de fazer as coisas para que não me pagam, Maria Salomé, porque um dia, se a tua vida seguir as regras naturais da existência, tu estarás a chorar como podes a perda do papá da menina do papá, e compreenderás, também tu, que a coisa mais tranquilizante que temos na vida, são as pessoas que só respiram bem com o nosso bem-estar.
O papá enlouquece se te sentir em perigo, Maria Salomé. O papá chora o teu sofrimento. O papá não é ninguém quando tu sentes que não és ninguém, Maria Salomé. Que farás tu da tua vida, quando te abandonarem nos calabouços de uma orfandade profunda? Que será de ti, Maria Salomé? Que luto é esse que te aguarda? Como voltarás a garrir~te por dentro e com que luz iluminarás ainda as estradas e os atalhos que te restem? 

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