quinta-feira, 28 de julho de 2016

A culpa deve ser do senhor Carlos, que se plantou em Santa Iria da Azóia à beira da Nacional 10, e aí vende petiscos até às duas da manhã. E a culpa é certamente minha, que tenho ananás fresco e diurético no meu frigorífico, e em vez de me ficar pelo saudável e natural, opto por me empanturrar de couves, chouriços, carnes gordas e tubos de ensaio cheios de vinho fresco e áspero. E juro que me parece uma boa opção, sobretudo depois de um dia de trabalho em que a refeição é apenas o momento em que me alimento de forma apressada, como se o cumprimento de regras impostas se superiorizasse ao gozo da mastigação.
Era para ser moelas, mas não resisti à novidade de jantar um cozido à portuguesa, como se meia-noite pudesse ser meio-dia. Afinal, depois vinha o recolher, umas horas no face a actualizar os treinos de candy crush saga, tempo suficiente para a bela da digestão.
Adoro o momento em que me sento numa tasca sozinha, peço o petisco e aguardo em pensamentos. Só eu comigo. E estava eu nesta coisa profunda, que é a intimidade comigo mesma, quando a figura se aproximou e se animou.
Desculpa, tenho estado a olhar para ti e a pensar. Posso dizer uma coisa?
Acho que o olhei por cima da armação verde dos meus óculos e, apesar da cor, não fui capaz de vislumbrar qualquer raio de esperança. Mesmo assim, resolvi dar-lhe a oportunidade que dou a todas as pessoas, porque ainda não consigo deixar de achar que, se coexistimos no espaço, teremos todo o direito de coexistir em palavras.
Claro. Ora diz.
É pá, é que tenho estado a olhar para ti, e és uma mulher bonita, tens umas feições perfeitas. Mas não percebo porque estás assim
Assim?
Pois. Não é por nada, mas já pensaste como te mexias melhor com menos dez quilos?
Desculpa? Por acaso achaste que tinha dificuldade em sentar-me?
Não leves a mal, mas eu também tenho um filho assim.
Assim? Assim como?
Pois, tu gostas de comer, já percebi. Mas isso é um problema...
Um problema? Um problema é eu querer estar sossegada e tu achares que me podes incomodar. Desculpa lá, mas eu não venho aqui para falar com ninguém e quero estar sozinha.
É pá desculpa. Toca aí.
Não toco em lado nenhum.
Não me faças sentir mal, que eu gosto é de falar com as pessoas, tocar nas pessoas. Vou me sentir mal.
E foste sentir-te mal, sim senhora, mas pelas razões erradas.
De repente está implantada a revolução na Cabana do senhor Carlos, largue a senhora porque a está a incomodar, senhor Carlos deixe estar, que o cavalheiro está de saída, menina a conversa já me estava a enojar, há pessoas que realmente parecem anedotas, este tipo é sempre assim, mete-se sempre com as pessoas,...
E silêncio, enfim,...
Não negaria uma conversa àquele homem, se se tivesse abeirado e me confessado que se sentia só. Comovem-me as pessoas que sofrem de solidão, porque ainda somos tantos humanos à face da terra que não vejo razão para uma tristeza assim. Mas aquele homem quis salvar-me de um problema que não é meu, como forma de se fortalecer numa ficção desajeitada.
Quando eu digo que detesto o provincianismo, também é disto que falo. E se como farinheiras, e moelas, e pudins dourados e caseiros a babarem-se de molhos de caramelo, podia não ser pelo gosto da boa mesa, mas apenas para me proteger de popularidades desadequadas.
Bebo o café, e hoje não vai o digestivo. Saio dali satisfeita, como sempre, porque a comida ´é tão boa que me enche mais a alma do que as desconversas.
E lá fora está um homem de polo cor de rosa, num carro preto. Fica a ver-me passar e quando me vê junto ao meu carro, resolve assobiar-me e fazer-me um sinal.
Oh meu Deus!, querem ver que o cozido me emagreceu?
Arranco da cabana para o mundo, onde ainda é possível sentir-me só.

sábado, 23 de julho de 2016

Hoje atendi o papá da menina do papá e tive saudades de um tempo que só reconheci bastante tempo depois de o ter perdido. E não é que não tenha valorizado o que tive durante o tempo que tive, é nunca ter sido capaz de imaginar a quantidade de tempo que se chora a perda, mesmo sorrindo.
O homem entrou-me pela linha adentro. Sim. O homem. A voz apenas o denunciava. A sua preocupação. A sua menina. Tudo o que importa na vida. Ela estava no meio de uma estrada sem telemóvel e ele demasiado longe para a poder socorrer. Foi nestes preparos que me entregou a sua menina. Chame-lhe um reboque e um táxi. Peça ao reboque para lhe dizer que vai ter um táxi para a ir buscar. Faça-me esse favor.
Em suma: você, que também está distante como eu, cuide dela como se fosse sua, ou nossa, o que você quiser.
Claro que sim.
A chamada seguinte, como por magia, era de um outro homem que me disse que havia uma menina que estava na estrada sozinha, de carro avariado. A mesma menina. A menina de seu papá. Pedi para a chamar e chamei-a pelo nome. Maria Salomé, tinha-me dito o pai. Não estranhou que soubesse o seu nome, como quem tem a ideia de que o mundo gira à sua volta, qual estrela de rock que contamina tudo, apenas com a sua existência.
Salomé é apenas duas coisas: a menina de seu papá e uma boneca de papel a quem dei esse nome, enquanto a vestia e despia com as minhas garridas costuras de papel de lustro. Nada mais. Mas nesse momento, era também a possibilidade de eu cumprir exemplarmente o meu compromisso com um homem desesperado.
Vai ter táxi, Maria Salomé, claro que sim. Acalme-se. Daqui a pouco estará em casa. Não agradeça, estou a fazer o meu trabalho.
E a seguir ligo para o pai, que me atende logo o telefone, e ah minha senhora falou com ela? Muito obrigado.
E fiz o meu trabalho. Um reboque e um táxi. Tudo o resto foi cuidar dos afectos dos outros, e ninguém me paga para isso. Gosto mais de fazer as coisas para que não me pagam, Maria Salomé, porque um dia, se a tua vida seguir as regras naturais da existência, tu estarás a chorar como podes a perda do papá da menina do papá, e compreenderás, também tu, que a coisa mais tranquilizante que temos na vida, são as pessoas que só respiram bem com o nosso bem-estar.
O papá enlouquece se te sentir em perigo, Maria Salomé. O papá chora o teu sofrimento. O papá não é ninguém quando tu sentes que não és ninguém, Maria Salomé. Que farás tu da tua vida, quando te abandonarem nos calabouços de uma orfandade profunda? Que será de ti, Maria Salomé? Que luto é esse que te aguarda? Como voltarás a garrir~te por dentro e com que luz iluminarás ainda as estradas e os atalhos que te restem?