quarta-feira, 6 de abril de 2016




Há dias em que é bastante evidente que crescemos e que temos um passado longínquo. Aconteceu-me hoje voltar ao meu liceu. A fachada estava tão diferente que não quis entrar. Tive medo de ver coisas que não me apeteciam. Mas lá entrei naquele sítio que já pouco reconheço, tantas foram as obras de melhoria. 
A senhora é encarregada de educação?
Quais senhora? Ah! Eu! Tinha perdido a idade de repente, mas recompus-me de forma desejável.
Vim acompanhar uma amiga que veio a uma reunião de professores. Tem aqui o filho a estudar. Eu também estudei aqui. Fui das primeiras alunas deste liceu. 
Entre. Esteja à vontade. 
Está tudo tão diferente. Não era nada assim. 
Pode entrar e ver o que estiver aberto. 
Já não existe a entrada cheia de escadas de cimento, nem o longo corrimão vermelho. Entrei.
Dirigi-me à sala de convívio, mas agora é uma biblioteca. Estava aberta. Entrei e olhei para um rosto que ficou satisfeito.
Ohhh!
 Professora!
A minha professora de Francês! Passaram 33 anos e estávamos ali outra vez, a reconhecermos o rosto uma da outra, a voz, a fisionomia, os tempos que foram nossos.
Eu dei-lhe aulas no meu primeiro ano como professora. Era uma virgem nestas coisas. 
E eu era uma virgem também, nestas coisas de andar num liceu, cheia de disciplinas, de responsabilidades e de coisas para pensar.
Verdade! No liceu pensava-se bastante, graças a professores que tinham apostado numa pedagogia que desvalorizava marrões e encorajava mentes inquietas. E aos 15, 16 anos, as mentes são bastante inquietas. E as que não são, tornam-se.
De repente, tive consciência do meu passado. Eu tinha crescido numa casa de educação exigente, nas garras de uma mãe disciplinadora, que tinha a braços quatro pequenos imberbes que haviam de crescer com maneiras. Não lhe foi difícil, mesmo assim, tantas eram as vezes que ameaçava escrever ao nosso pai, se as coisas não corressem de feição. E o pai, que era embarcado de profissão, meigo mas corpulento, vinha sempre de seis em seis meses, primeiro atracando-se de mimos e novidades, depois pedindo sempre explicações sobre comportamentos desviantes. Medo!
A escola era então o sítio onde eu podia desenvolver uma parte diferente de mim, ser singular, ser diferente, ser gente com ideias cada vez mais próprias. E era. Bebia sofregamente os ensinamentos da professora Vitalina, que passava slides nas aulas de Sociologia e nos perguntava sobre o que as imagens nos faziam sentir. Amava aquelas aulas, talvez mais os reflexos que produziam em mim do que do tempo em que estava ali sentada, a escutar e a discutir coisas importantes. Lembro-me de ter feito um trabalho voluntário depois de uma aula sobre produção humana, tal foi a força das palavras da professora Vitalina.
Depois vinham os passeios a Óbidos. Não me recordo do que víamos, mas lembro-me bem da algazarra que fazíamos no autocarro e dos almoços. Acho que íamos a Óbidos para bebermos os nossos primeiros copos e apanharmos as primeiras tonturas boas que a ginja nos dava. A professora Vitalina levantava-se da cadeira do restaurante, dizia Fernando Pessoa e as lágrimas caiam-lhe pelo rosto. Não nos surpreendíamos, porque aquela forma de sair da norma era um professor a ser pessoa, tocável, sensível, humano entre os humanos.
Lembro-me também do professor de Desenho, o professor Luciano, franzino mas bonito. Lembro-me bem de não ter jeito nenhum para fazer desenhos mas de me esforçar ao máximo para fazer uns rabiscos giros, tamanha era a minha vontade em lhe agradar. Miúdas parvas, era o que nós éramos. O professor Luciano chamava-nos e nós levantávamo-nos do estirador, de rosto baixo e corado. Se alguém dizia alguma coisa entre o trajecto que ia do nosso lugar até à sua secretária, riamo-nos de nervos, disfarçando  como podíamos que sermos chamadas ao professor Luciano era um momento especial.
Lembro-me ainda da professora de Biologia, que adorava a minha escrita e que me dizia que nunca tinha tido um aluno que escrevesse tão bem como eu, pena eu escrever coisas tão desacertadas. Dava-me muitas negativas nos testes, mas eu sabia que ficava com pena de mim, por eu escrever tão bem.
Lembro-me da sala dos professores ser uma espécie de divisão interdita. Hoje estava aberta e disponível. Está bonita, com um mini bar, mesas e cadeiras e uma decoração de salinha de estar.
Lembro-me de haver espaços  verdes à volta da escola, de os meus colegas se perderem por ali a fumarem ganzas e de eu os ir chamar. Eu não fumava, não por não ser potencialmente desajuizada como os outros, mas porque tinha medo de gostar. E o remédio era não experimentar. Lembro-me de eles quererem fumar calmamente e faltarem às aulas e de eu lhes pedir que não o fizessem, para não chumbarem por faltas. Dizia-lhes que fizessem como eu, que simplesmente desligava a atenção da aula quando não me apetecia estar ali.
Lembro-me de a minha turma ser a primeira a ter aulas de Teatro e de vibrarmos com a novidade. Lembro-me de o professor de Teatro ter sido o primeiro e único professor a abandonar a sala de aula, por causa do nosso comportamento desadequado. O comum era os professores mandarem os alunos para a rua quando não se comportavam bem. Aquela reacção absolutamente inesperada do nosso professor de Teatro fez-me ter medo que ele não voltasse. Foi um sentimento especial e raro. Nunca tinha sentido antes que um professor poderia simplesmente não voltar, por nossa culpa. Lembro-me de, na aula a seguir, estarmos empoleirados no corrimão do corredor, espreitando ansiosos a sua chegada. Portámo-nos muito melhor a partir desse dia.
Lembro-me da minha professora de Português. Ainda me lembro do seu nome completo: Maria Helena de Freitas Lindo. Era uma senhora diferente de todas as outras. Era magríssima, velhíssima, pequeníssima. Tinha feitio de trovão e um cabelo cinzento muito curto, cor de céu em tempo de chuvadas fortes. Era muito cínica, mas acho que abusava dessa característica por pura pedagogia.
Nós punhamo-nos à boleia para o liceu e a professora Maria Helena de Freitas Lindo também. Era uma delícia, vê-la a acenar aos condutores de dedinho muito esticado, nas suas calças de napa preta, como uma estrela de rock envelhecida e muito digna.
Lembro-me de a adorar e de me rir das suas palavras menos agradáveis, talvez porque adivinhasse a sua dureza ensaiada. Mesmo quando me dizia coisas menos boas, nunca lhe levava a mal. E nesse tempo (como agora) lembro-me de ser fácil ferir-me com palavras difíceis de ouvir.
A professora Maria Helena de Freitas Lindo exigia a verdade, sobretudo quando os alunos inventavam desculpas que entendia como esfarrapadas. Dizia que nos faria o mesmo que fazia aos filhos, quando pequenos: cheirava-lhes a cabeça, para ver se lhe cheirava a mentira. E era assim, cheirava a cabeça de alunos que se deixavam aterrorizar pelo faro das suas narinas, Eu ria-me, talvez porque a mentira não fosse especialidade que eu tivesse necessidade de experimentar.
Mas a coisa mais importante que a minha professora de Português me ensinou, aprendi-a eu a propósito de me ter pedido uma opinião. Eu tinha sempre ideias muito próprias, mas recordo-me de a colega que falou antes de mim ter dito algo com que eu concordava em absoluto. Arrisquei então em experimentar uma expressão que nunca tinha usado, convicta de que seria uma resposta imponente:
"Faço minhas as palavras da colega!"
 Não faz nada! A menina nunca pode fazer das suas palavras as palavras de outra pessoa, porque cada pessoa é uma pessoa, cada pessoa expressa-se de uma maneira singular. Eu nunca mais quero ouvir isso! Diga, por favor, o que pensa.

Nunca mais foi de outra maneira. Nunca, nunca, nunca mais na vida, professora Maria Helena de Freitas Lindo. Velhinha que estava, já não a verei à boleia de calças de napa em lado nenhum, mas asseguro-lhe, professora, que tenho feito dos meus dias momentos cheios de ideias próprias, por escrito, na oralidade, no interior da minha cabeça. E realmente, independentemente dos resultados, não me parece que haja melhor forma de estar. E poderia cheirar-me a cabeça, que cheira a verdade.