domingo, 6 de maio de 2018



Não sei se vos minto se vos disser que o melhor da Turquia foi o harém de possibilidades que lá deixei.
Como dizia a minha amiga Ju, "vais para o meio daqueles homens que passam a vida a dar beijinhos uns aos outros, que bebem leitinho e andam o dia todo de um lado para o outro, de pulseiras de contas na mão."
Verdades. Tudo verdades.
Não vou dizer que os homens turcos são isto ou são aquilo. Aliás, quanto mais viajo, menos me sinto capaz de definir os povos dos sítios por onde passo, porque os outros podem ser tudo, assim como nós.
Vou concluindo ao longo desta travessia que, se viajo, é muito mais para saber de mim do que para saber dos outros.
A diferença é uma coisa irresistível. A diferença, a percepção da diferença, a surpresa da diferença.
Estar a sós com o mundo a desfilar à minha frente,ser chamada a sentir coisas e dar comigo a responder à diferença. Não há nada mais excitante do que isso. E aqueles homens que bebem um leitinho que se chama "ayram", que me põem a beber uns quatro jarrinhos de "ayram" por dia, não podem ver uma mulher que se faça acompanhar por si mesma, que logo lhe prometem a melhor das companhias.
Divirto-me a ver como me abordam, achando talvez que a minha solidão é mais um apelo a convites do que uma forma confortável de estar comigo mesma.
Trago nas narinas as memórias fortes e doces do bazar das especiarias,... droga pura.
Estou fantasticamente baralhada com tudo o que me acaba de acontecer, e talvez não vos minta se vos disser que o melhor que trouxe da Turquia foi o encontro com Gora.
Gora nasceu no Bangladesh há quarenta e um anos, tem uma daquelas profissões que o tem ensinado a sentir as pessoas. Quis o caos do acaso que nos encontrássemos uma vez. Quis a simpatia mútua que marcássemos um encontro, talvez para que o acaso não nos desencontrasse.
Gora apareceu e eu também.
Comprámos bolinhas de queijo muito branco e azeitonas achatadas de um verde semi camuflado. Sentámo-nos nos bancos de pedra junto ao mercado das especiarias, felizes com a simplicidade do menu. Gora teve o cuidado de pedir ao vendedor umas colherzinhas de prova, para que a partilha do repasto se fizesse de uma forma higiénica, como mandam as leis dos que, preparando a amizade, reconhecem o conforto de uma certa cerimónia.
Não tardou a vinda de uma vendedora. Gora não queria nada mas ofereceu-lhe a nossa comida. A vendedora, mulher de rosto fatigado, escondeu o espanto da oferenda e pôs a mãozinha trémula dentro do saco do queijo. Sem colherzinha. Uma bolinha de queijo. Gora insistiu. Mais umas três bolinhas de queijo, que se iam esfanicando na boca mais rapidamente, à medida que os dentes se distraiam da timidez da dentada.
Comovi-me. Dei comigo a ter prazer, à medida que a vendedora comia. Quando ela se saciou, não consegui deixar de dizer a Gora que ele era uma pessoa muito especial.
Veio outra vendedora, acompanhada de uma menina de uns dez anos. Gora repetiu a oferta e, de repente, eu senti que estávamos ali para tornar melhor o dia de algumas pessoas, não tanto pela oferta gratuita da comida, mas mais pela possibilidade de alguém poder acreditar que os dias não têm que ser sempre igualmente duros.
A menina não quis comer. Pôs os dedos na boca e mostrou-me a falta de dentes. Gora meteu-se com ela.
Quanto custa este porta-chaves do ursinho?
Sete liras.
Isso é muito dinheiro. Dou-te três liras.
A miúda assenhorou o rosto, repuxou os lábios e abanou o rosto firmemente, em modos de "não,não e não"..
Gora sorriu com os olhos e tornou:
E por este porta-chaves do bonequinho, quanto queres?
Outras tantas liras.
Fazes por três liras?
Outra vez não, e não e não.
Gora pôs a mão no bolso e estendeu-lhe três moedas de uma lira.
Toma, para comprares um gelado.
A miúda afastou-se de nós, como se o dinheiro lhe queimasse as mãos.
A atitude de Gora feria~lhe a arte do comércio.
Gora compreendeu.
Ok, então o que me podes vender tu por três liras?
A miúda apontou um porta-chaves vermelho, em forma de coração.
Chegaram a acordo.
Eu ria-me das peripécias da venda mas, de repente, sentia-me profundamente tocada pela noção de dignidade daquela criança.
Gora podia chamar-se Agora, porque eu acho que ele tem uma habilidade especial para aparecer no momento certo. E o momento certo, para tanta gente,é sempre agora.
Antes de nos levantarmos do banco de pedra, Gora estendeu-me o coração e, rindo, disse-me que aquele porta-chaves era mais apropriado para mim.
Na verdade, eu trouxe alguns porta-chaves da Turquia - nenhum tão foleiro como este, nenhum tão fantástico como este.

Foto de Zuraida Guedes.


Nunca viajo sem a minha máquina fotográfica, companheira garantida de todas as viagens.
A Turquia foi o país em que fiz menos fotografias, porque eu viajei com a ideia de que me encontraria com uma cultura completamente diferente da minha. Uma simples fotografia poderia ser uma ofensa e eu, o que mais queria nesta viagem, era estar em paz com o mundo..
Do que eu não suspeitava, é que o mundo vive tempos em que as culturas convivem de uma forma descontraída, à força de andarmos todos aos pinotes de terra em terra. E isso fascinou-me. Passeamos pelas ruas, e o mundo está receptivo à diferença, cioso de diferença!
Esta ideia que eu levava de que talvez fosse provável não dever fotografar tudo o que eu queria, abriu-me muito a mente ao contacto com as pessoas. E esta viagem à Turquia permanecerá muito mais em mim como uma memória das emoções do que vivi com os outros do que nos momentos de solidão dos cliques das fotografias.
Na primeira manhã, pus-me num frenesim interior a subir uma rua que me levaria ao Grande Bazar. Estava excitada por ir ao Grande Bazar, acho que exactamente como me excitava em miúda, em vésperas de excursões de escola primária.
A rua que me levou ao Grande Bazar era comprida, um pouco menos íngreme que as ruas do bairro alto, e cheia da vida das pessoas que têm como profissão não pararem sossegadas.
Biron, biron, biron,... era a palavra de ordem dos empregados das esplanadas.
Biron, biron! Where are you from?
From Portugal!
Tia, tu Cristiano Ronaldo?
Si!!!
Yo Slimani! Tu conoces Slimani?
Rimo-nos. Rimo-nos muito. Estavam feitas as apresentações, Portugal versus Argélia, em plena rua que vai dar ao Grande Bazar da Turquia.
Por momentos esqueci-me do Bazar e deixei-me convencer que era ali mesmo que eu ía comer o melhor quebab do mundo. Não foi. O melhor quebab do mundo eu como-o em plena Almirante Reis, num restaurante de um turco e de uma indiana. E nem há discussão!
Slimani trouxe-me um jarrinho de ayram enquanto esperei pelo quebab. Não sei se me fascinei por ayram ou pelo jarrinho estiloso em que era servido. Ou talvez a falta de cerveja me fizesse sentir naturalmente convertida àquela bebida estranha.
Slimani dividia-se entre os biron que gritava ao mundo e a minha mesa.
Sim, tinha tabaco português. Dei a Slimani o meu último Camel e ele, agradecido, tirou uma pulseira de couro preto do pulso e estendeu-ma. Aceita. Uma recordação minha para ti.
Diz-me onde posso comprar tabaco e quanto custa um maço.
Eu fumo Camel e custa 10 liras.
Fui à loja que Slimani me indicou e voltei sem o tabaco.
Tu sabes que me pediram 35 liras por um Camel?!
Dá-me 13 liras que eu própro to compro.
Slimani tinha-se esquecido que me tinha dito que o maço custava 10.
Compreendi naquele momento que eu iria aprender na Turquia a ficar feliz cada vez que achasse que tinha sido pouco enganada.
De repente fazia-se tarde para chegar ao Bazar, porque tinha outras cores, outras formas e outras gentes para aprender.
Fui. Fui sem ficar ressentida com Slimani. E essa foi a primeira novidade sobre mim.