sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Saí de casa animada, hoje. Voltei um pouco a ser como as pessoas normais, que trabalham cinco dias por semana e aproveitam os outros dois para fazer coisas que lhes dêem prazer. E foi com um sorriso que saí de casa, hoje, e apanhei o eléctrico para ir até à Graça, passear-me e tirar umas fotografias.
Abeirava-me eu da paragem do eléctrico quando reparei que um rapaz me sorria e eu não sabia quem ele era. Achei estranho, mas depois percebi que eu vinha a sorrir e o meu sorriso chamou a sua atenção. Quando eu passei por ele, disse-me que eu era linda e eu fiquei sem saber se me havia de valer da nova lei do piropo ou se havia de deixar de sorrir. Não fiz nem uma coisa nem outra, mas percebi que o sorriso faz as pessoas lindas. Desejei sorrir todos os dias, não para ser linda, mas para que me sorriam e me digam algo que recompense o estado de boa disposição. Não quis apanhar o mesmo eléctrico do que ele, porque não me apeteceu ir de pé num transporte atulhado de gente. O eléctrico dá-me aquela sensação boa do tosco misturado com o requinte de usufruirmos de um transporte que se tem conservado muito por orgulho e vaidade, por isso quero sempre ir sentada, a olhar as madeiras velhas das janelinhas, a olhar o guarda-freio e a pensar como é que ele faz aquilo e a coisa não descarrila. Agora existem mulheres condutoras de eléctrico e eu gosto de as ver a conduzir, porque os seus gestos são normalmente mais delicados, o que faz com que sintamos que o eléctrico anda mais acarinhado.
Estava eu em pensamentos destes e noutros mais ou menos diferentes quando entrou uma senhora, toda ela vestida de beije e de chapéu muito bem armado na cabeça. Ficou ainda mais patusca quando falou: andam por aí carteiristas ou quê? Dei comigo a responder-lhe: estou aqui eu, minha senhora, mas não se preocupe que hoje vou sentadinha.  Quando ela me sorriu, tinha no rosto a expressão de quem não esperava uma resposta. E disse: você não me mete medo, vejo bem que anda ao mesmo que eu. 
Andaremos sim, todos ao mesmo, nas azáfamas dos dias gravados nas linhas que se desenham nas estradas velhas da cidade.
No eléctrico, tenho esta sensação boa. O espaço é invadido pelas almas simples das pessoas que ali andavam noutros tempos, e elas segredam-nos a espontaneidade de falarmos uns com os outros, ainda que nunca nos tenhamos visto.
Adoro o eléctrico, os metaizinhos da máquina que me transporta, as mãos sábias dos guarda-freios vestidos de um azul muito anoitecido, as madeiras das janelas e os fechos de um metal mais do que envelhecido, as senhoras que entram e que têm boca para falar com toda a gente, eu ali sentada a ter boca para falar com toda a gente, ... deixar depois aquele reino e encontrar um castelo no meu caminho.
Haverá alguma coisa mais mágica do que este deixar-me ir até esbarrar-me com um passado que se deleita em conversas animadas com o  meu presente? Amo Lisboa. Amo-me feliz em Lisboa.

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