domingo, 24 de janeiro de 2016

Também é através de ti que sinto que o tempo passa. Quase meio século de existência e o tempo começa, finalmente, a passar. Sinto-o na ausência das passadas que não entusiasmam nenhuma calçada, sinto-o no virar para cá e para lá a cada nove minutos de um despertador embirrante, sinto-o a passear-se entre a escuridão do cérebro e as papadas que se desenham por baixo dos olhos. Sinto-o. O tempo. Mas é uma dor como uma moinha, uma dor como se eu fosse alguém que vai perdendo as forças para sentir a dor com aquela força que dói sempre muito.
Telefonaste-me ontem, mais uma vez, e a tua saudade enternece-me sempre. Quisesse o tempo puxar a fita até outro momento, e um telefonema teu seria um terrível sentimento de perda. Agora não. Ligaste-me ontem e eu senti que é bom ter encontrado uma outra forma de te sentir, e sinto-me mais especial hoje quando te lembras de encurtar a distância do que quando era possível sermos completamente olfacto e toque, desejo e visão.
Falámos tantas coisas, pretextos em forma de palavras que encurtavam o caminho até nós. Sempre nós. Sempre a loucura que alvoraçava os corações. A loucura. A loucura no rosto que se transfigurava na paixão de todos os beijos, a loucura nas encenações que fazíamos só para nós, a loucura na gargalhada doida que desenrolava o sexo num tapete coberto pela felicidade de viver, a loucura quando não te podia ver de manhã porque me lembrava que a ausência seria grande no descer das escadas que me arrastavam da tua casa à tua rua estúpida, cretina e vazia de ti, a loucura quando me tinhas nos braços (e tu nos meus!) e me dizias de repente que não haveria nem mais uma noite para o nosso amor, a loucura na avalanche de palavras cruas com que enchia a caixa do teu correio electrónico, a loucura quando te imaginava de corpo perdido pelos bares, entre copos e curvas loucas, a loucura quando me dizias que fosse, e eu ia de sorrisos na auto-estrada, o caminho todo, e não havia quilómetro que me impedisse, a loucura quando ficávamos muito sensuais, eu imaginava sempre que havia um câmara man a filmar-nos, e assim eternizaríamos todos os momentos, a loucura quando íamos ao bar da vila, bêbedos e loucos, e eu, sentindo-me o mais energizado dos seres humanos, chamava a atenção de todos os homens. Tu não gostavas nada e eu não gostava que não gostasses, porque eu só queria que me acompanhasses na alegria de me passear pelo mundo contigo, fosse por onde fosse. A loucura. Sinto que poderia escrever uma vida inteira sobre a loucura que sou eu quando tu te passeias pela minha vida, nem que seja pé ante pé.
Ontem, quando o telefone se desligou, tu foste da cozinha ao quarto onde te deitas sempre e te aninhas num colo que escolheste para ti e eu deitei-me mais na cama onde já estava ao pé de ti. Poderia ter dormido só, pois podia, mas quando me aconcheguei no aconchego que o meu corpo me dá, parte de ti, que seria certamente mais do que a metade de ti, amanheceu no meu leito uma noite inteira e eu acordei outra, como sempre.

Sinto que já nem preciso que estejas para que estejas sempre. E eu vou-me pincelando de vida e o coração bate um bocadinho mais depressa, a boca aperta-se em pensamentos, os olhos acendem-se do bálsamo com que me inundas a alma, ...  e o tempo passa.

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