segunda-feira, 4 de janeiro de 2016





SE PUDERES, NÃO MATES!

2047 foi um excelente ano para não morrer.

Acordei gelado e muitíssimo mais desnudado do que me lembrava de ter

adormecido.

Tudo escuro, mas havia uma pequena janela ao fundo, que se enfeitava com

rodas de carros.

Tinha frio, mas achei que não tinha nada que vestir, nem o meu andarilho, nem

o meu neto António para me ajudar a mexer o corpo. Nada.

De repente, a vista estava já habituada à falta de luz e vi muito mais do que era

suposto. Gritei, gritei um grito que vinha tão de dentro que não dei por ser eu.

Ninguém se levantou. Aqueles não acordaram mais.

Um rodopiar de chaves e entraram por ali adentro, batas iguais e socas de

borracha a condizer com a função. Aproximaram-se e eu morri de novo, só para

que a minha vida não os assustasse.

Começámos então a fazer tudo o que deveria ser feito, o melhor que sabíamos.

Se vinham para preparar o morto, então eu deveria estar completamente morto.

E assim me acalmei do pânico do início da minha cerimónia fúnebre.

Pensar que tudo vinha da minha juventude, sábios dias à descoberta das delícias

do misticismo. Tinha anos de solidão dentro de mim, a ensaiar a viagem do

espírito que se separava da matéria e me levava a qualquer lugar.

Pela última vez viajei e, como sempre, pus-me de espírito sobre a minha

imagem.

Vestiram-me os boxers que a Ana me deu no Natal. Nunca os vesti, porque

estranhei passear-me com renas coloridas encostadas às partes mais sagradas

que um homem tem. E que mais? Olha!, o célebre fato que ficou por vestir no

sábio dia em que a minha filha Manuela não se casou. E sapatos,  meias novas…

Nem sei se alguma vez me senti tão mascarado. Mas às vezes os nossos adoram-

nos de uma forma muito pouco condizente com a nossa essência, e assim nos

dignificam.

Aceitei tudo, porque morrer é também delegar vontades nos outros.

“Morrido” que estava, lá fui eu e eles para junto de uma cova bem funda.

Quanto mais o meu corpo se aproximava da terra, mais lhes nascia a consciência

do fim de todas as coisas.

Afastei-me.

Quanto mais o meu corpo se aproximava da terra, mais me empenhava em

espírito numa forma de lhes falar sobre a relatividade dos desfechos.

Ninguém acaba.

Ninguém que seja parte de nós.

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