terça-feira, 12 de janeiro de 2016




Luz Indo

Demorou os lábios sobre a chávena de café, como quem encontra um lugar para pousar um pensamento demorado. Sim, a crise, a risota que se inventa todos os dias para entreter um sentimento de pura solidão. Mais um dia, mais um monstro de força a abrilhantar-lhe o olhar. Para hoje, uma entrevista de emprego que a conduzirá a um tuk tuk, entreter estrangeiros, passear o tempo, falar a língua dos outros, rir com o entusiasmo dos outros, conduzí-los pelos becos, entretê-los, assegurar que o dia lhes sorri hoje e nas memórias que se guardam para sempre.

- Terá que aprender a conduzir. Terá que ter vontade, nada se faz sem vontade. Começa às nove e meia, e terminará pelas oito e meia da noite.
Quinze minutos, quinze euros, trinta minutos, trinta euros e dez por cento de comissão.
- Com certeza que sim.

Riu-se com os olhos, com os dentes e mandou-a passear estrangeiros. Uma paisagem tão bela a desmoronar-se à sua frente com o toque horrendo dos outros a explorarem o mundo e a desfazerem as energias positivas que se inventam todas as manhãs, mas tudo se remediará com o rever da beleza das coisas. E começa desesperadamente à procura do belo como quem tem muita sede. E encontra, sim, encontra uma flor perdida e imponente no Miradouro de Santa Luzia e pensa que as flores nunca se descabelam, por muito que o vento lhes sopre. Fotografa a flor, guarda a flor na memória sem o arrancar de uma única pétala. Volta-se de costas para o rio e é feliz a porta verde daquela casa de bugigangas, especialmente decorada para turistas.

- Queria uma mala destas que têm muitas cores, mas daquelas que se põem à cintura.
- Pois, dessas não tenho, porque estas são feitas para turistas, que as usam ao ombro.
- Podiam ser feitas para usar à cintura, e asseguro-lhe que também eu sou uma turista. A diferença, é que me passeio em círculos, como quem tem que cumprir em si mesmo uma forma perfeitamente geométrica. E é você que faz estas sombrinhas bordadas e coloridas?
- Não. Vou mostrar-lhe o que faço.
- Você fotografa a realidade vista do ângulo que embeleza a vida. Tudo o que você vê é guardado num click raro: as sombras, os brilhos, o momento em que o mundo se move e o seu olhar atira as coisas para outras dimensões. Também tiro fotografias, mas não é assim.
- Podíamos fotografar juntos.
- Sim, tenho apenas um amigo com quem partilho a intimidade das captações raras, mas poderei tentar fazê-lo consigo. Talvez sejamos capazes de o fazer com o respeito que se exige.

Durante muitos dias, ela procurou empregos decentes como quem não acha agulhas em palheiros, mas teve a companhia certa para captar a beleza das coisas.
E um dia, quando se passeavam animadamente pelo Miradouro de Santa Luzia, havia por lá uma flor imponente que se contorcia para os ver passar, registava esse momento, e não lhes roubou uma só das pétalas que lhes adornavam o ser.

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