quinta-feira, 31 de dezembro de 2015



Felicidade chamava-se assim, e o seu nome exprimia o estado de
alma de sua mãe, desde o momento em que soube que não mais
estaria sozinha na vida.
Felicidade foi a filha mais velha de cinco irmãos, a única menina e o
único motivo de verdadeiro infortúnio familiar. Mas começou por
ser felicidade, felicidade para sempre.
Aos dezoito anos tinha a idade legal para tomar conta de si e abdicou
dessa tarefa com muita vontade, lançando-se nos braços de António,
fumando os charros de António, injectando-se com as seringas dele,
sofrendo as primeiras agruras do vício com ele, palmilhando os
caminhos da marginalidade bruta por ele.
Mataram. Um velho de setenta e oito anos que não quis cooperar,
encontrando poucos caminhos de fuga do alto da sua cadeira de
rodas. Valeu-lhes um relógio de ouro. Valeria o suficiente para
sustentar muitos dias de tranquilidade. Mas não.
Entregaram a sua maioridade aos cuidados da lei. Dez anos por
cumplicidade que desfizeram Felicidade em muitos prantos, até ao
dia em que os enjoos constantes poderiam ser o início de uma
esperança encorajante.
Abdicou da possibilidade de ter Inocência consigo, porque existem
lugares interditos aos bons começos, e assim entregou a filha aos
cuidados de Generosa, sua mãe. Dez anos com uma avó que a encheu
de afectos e, através do amor, muitas foram as lágrimas que se
envergonharam.
Felicidade chorava, mas era um choro que não se via. Eram as
conversas das assistentes sociais, sobre a vida futura, balelas cínicas
sobre o recomeço de uma vida nova. Paga-se uma pena e não se
apaga um passado, nem os olhares, nem os cochichos, nem as
publicações anuais nos jornais da terra em época de Natal, eterna
saudade de filhos e viúva, a lembrar que houve um dia que lhe
pesará para sempre…
Receber as visitas que partem sempre, empatar todas as semanas a
vida de quem mais se ama, dormir e partilhar o mesmo ar com quem
não se conhece, snifar o suor delas, o chulé delas, suportar as
manias delas e não partir para situações que agravem uma vida que
já se perdeu.
Terça-feira, 13 de Agosto de 2013. Um dia cheio de vésperas de
ansiedade.
Afinal, o melhor dos dias é o que anoitece.
Deita-se. Aconchega-a no seu colo. Sente o calor de Inocência no seu corpo.
Tranquiliza-se com o cheiro da sua nuca.
“Por ti serei sempre o meu melhor.”

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