terça-feira, 29 de dezembro de 2015
ANTES SÓ
Finalmente aceitou o convite de Manuela e encontraram-se na esplanada do
Adamastor. Voltaram-se para o rio e banharam-se em marés de memórias.
Vinte anos tinham passado desde o dia em que ela decidiu que o melhor seria
dizer à família que não assistisse ao momento que os uniria até que a morte os
separasse.
Intuía a condenação de nunca se acompanharem de facto.
Divorciou-se do compromisso de ser feliz para sempre e suspirou de alívio,
exactamente no momento em que o mundo se chocou.
O mesmo olhar a convencê-lo sempre que existe uma parte do mundo onde
sempre nos aconchegamos, o mesmo odor calmante, a mesma voz grave de
quem sente as palavras, uma dureza mais profunda na expressão da alma. Um
suster de respiração, mil desalentos a multiplicarem-se até ao infinito.
- Porquê, Manuela?
- Eu queria sentir a azáfama da existência a interromper-se no pousar de um
pássaro diante dos meus olhos, e sorrir com isso. Eu queria chegar a meio da
subida e sentar-me na igreja do Chiado só para sentir os calafrios da pedra
centenária, e estar ali, eu, o sem-abrigo e o homem que pedia para sobreviver.
Queria sentir o universo, que era muito mais do que o meu conforto ou a vida
que estava não sei onde à minha espera, a lembrar-me sempre que, à hora X,
correspondia a impreterível obrigação Y. Queria que sentíssemos sempre a
ausência das regras que ditariam compromissos tantas vezes desfasados da
nossa forma de ser. Não queria sentir os movimentos da vida todos
acorrentados numa prisão que eu ajudasse a construir. Queria sentir os gestos,
mas senti-los como alguém sem o conforto dum abraço diário. Queria ser só eu e
o mundo, testando a existência sem bengalas.
- E agora, o que queres agora?
- Agora consigo resumir-me numa certa forma de estar, que mantenho.
Compreendo hoje que o amor não se manifesta na capacidade que tenho de
sentir, mas sim no modo como um certo universo reage a uma manifestação de
um sentimento. De que te serve um sentimento se o outro não dá por ele, de que
te serve um afago se o outro não sente o toque? Que amor é esse se no que mais
te empenhas em dar menos te recebem?
E vice-versa também.
Desencontros diários que mutilam vidas, e toda a gente a movimentar-se numa
anestesia doentia.
Não quero sentir isso.
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