segunda-feira, 21 de dezembro de 2015



“que vive em lugar deserto, isolado, geralmente por motivo de penitência, 
religiosidade, ou simples amor à natureza.”

 
“E se viver na cidade, o que sou?”

 
“Começo o dia bem cedo, bem mais cedo do que quando não estava nesta

solidão, e são os banhos de Maria, os deveres de Luís, as camisas para

levar à engomadoria, as bichas até chegar ao trabalho, um patrão sempre

insatisfeito, um chefe sempre austero desde que descobriu a fórmula

mais simples de cumprir objectivos de forma infalível, as queixas de

Marisa sobre os maus-tratos de Moisés, os jantares de Joana que me

assegura ser a divorciada mais célebre entre as suas amigas de longa

data, o padre que não me consegue converter e que insiste que seja o

organista da paróquia – não sei que tipo de religiosidade quer que

cumpra! –, a tia Gilda dos olhos doces, e por isso a visito todos os

Domingos no Lar da Santa Casa da Misericórdia… E que mais, diga-me?”

“Compreendo o que me diz! Mas você não faz nada que lhe dê prazer? O

que vejo aqui é que você começou por ter uma dificuldade na busca do

prazer e, provavelmente, abandonou-se pelo caminho, como alguém que,

nas suas passeatas, vai sempre descalço, por caminhos com ausência de

maciez. Ora diga-me: se contabilizar em quilómetros o esforço de uma

semana de tarefas, quanto valem as suas marchas?”

“Nunca pensei assim, mas talvez uns vinte, vinte e cinco quilómetros…

Diga-me agora algo que me anime. Caramba, uma consulta tão cara e

você deprime-me, faz-me pensar no que eu não quero. Estou sem rumo,

percebe? Estou aqui porque estou sem rumo.”

Pela primeira vez sorriu. Um homem que verbaliza este desespero assim, 

fazendo de uma consulta a possibilidade dispendiosa de se controlar os

dias que estão para vir.

“Meu amigo, o Ermitão é uma carta assim, de um caminho a sós, muitas

vezes penoso e longo. E a pena não está no que se faz, mas na forma como

enfrentamos os percursos”.

“Sim, compreendo que tudo me pesa. Outra carta, por favor…”

Sim, em situações de dificuldade extrema, tinha algumas cartas

marcadas, autênticos futuros por encomenda. Voltou o arcano e sorriu.

“A estrela. Uma das melhores cartas do baralho… Esta mulher poderá ser

uma nova esperança de luz na sua vida.”

Sorriu como uma criança mimada.

O futuro sonha-se. Primeiro sonha-se… e assim se navega.

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